1 de setembro de 2012

O descendente

Conto inspirado em: The Offspring - Gone Away (letra)

À inexistência de amor na SP do Thiago Botinhão.

     Eu tinha cinco anos quando meu pai me trouxe a você pela primeira vez. Ele disse que estava aqui e não pude acreditar que você morava em um cemitério. Hoje em dia até consigo rir disso, como eu era inocente... Mas a inocência durou pouco: Logo meus instintos mais primários me fizeram sentir sua falta e derramar lágrimas na relva baixa ao redor do túmulo. Uma criancinha. Seu descendente.
     Os anos se passaram e a falta foi se alastrando como um vírus por todo meu corpo frágil. Descobri que havia herdado sua osteoporose. Meus amigos da escola sabiam que eu adorava jogar futebol, mas como a doença foi agravando eu não podia nem mais chutar o vento, quem diria uma bola. Nunca tive raiva de você. Você me deu sua vida, pelo que meu pai disse. Como poderia guardar qualquer sentimento ruim em relação a você? Devo ter herdado seu coração bom, também.
     Minhas namoradas nunca tiveram uma sogra. As amigas delas achavam que isso era algo bom. Aposto meus ossos cartilaginosos que elas amariam te conhecer; seriam mais próximas de você do que de mim. Meu pai vê muito de você em mim: As brincadeiras fora de hora, o jeito todo esparramado de dormir, a fome incontrolável. Ele diz que não tinha uma pessoa que não se dava bem com você. Seu velório estava tão cheio de gente que seus parentes achavam que três pessoas estavam sendo veladas simultaneamente.
     Saudades. Saudades do que nunca tive.
     Eu sei, é uma frase manjada, mas nada casa melhor do que isso. Ah, mãe... Se você estivesse viva, talvez hoje em dia eu soubesse patinar: Você amava patinar, não era? Era muito econômica também, provavelmente eu saberia como não me atolar em dívidas. Talvez eu tivesse um direcionamento profissional com você por perto. Talvez muita coisa. Talvez tudo fosse diferente. Talvez eu não te amasse tanto se fosse viva. Acho que é por isso que amam tanto Deus: Se ele fosse uma pessoa, estariam pouco se lixando para ele. Você é uma entidade como Deus, mãe. Está com ele aí em cima, dando umas olhadas aqui para baixo só para saber se tenho amigos leais e mulheres afetuosas.
     Mãe, ainda não parei de beber. Sim, eu sei, esse cantil está cheio de uísque, mas não sou um alcoólatra. Não mesmo! Já me viu bêbado alguma vez aí de cima? Já dei vexame? Já te envergonhei? Não, mãe: Honro sua memória. Bebo só para manter o paladar desperto, para me concentrar melhor nas pequenas belezas desse mundo. E isso não é desculpinha desfarrapada, eu juro.

     Acaricio as tulipas que deixo quinzenalmente no vaso à direita de seu nome... só para que você saiba que ainda me importo. Sua pele era boa? Um detalhe totalmente alheio a mim. Penso que sua pele era macia como as pétalas dessa tulipa. O pai disse que você gosta dessa flor. Eu também gosto, então. Tudo que me lembra de você me alegra, desde a foto três por quatro na minha carteira até ir em um rodízio de churrasco e comer mais que todos da mesa. Tenho que te manter viva dentro de mim, manter sua chama acesa, ou o mundo se torna frio demais.
     Já passei da fase do desespero, da fase onde grito seu nome para os céus e peço para que eles me troquem por você. Estou mais tranquilo: Talvez em outra vida eu te encontre por aí. A justiça divina não falha, não é? No fim de tudo, de toda essa incompreensão terrena, as coisas devem fazer sentido aí em cima. Por enquanto, o céu parece tão longe...
     Preciso ir, mãe. Minha vida continua, e acho que a sua também. Não quero tomar muito do seu tempo. Em duas semanas eu volto com tulipas novas, tudo bem? Não fique triste. Você vai me fazer chorar desse jeito. Isso. Acalme-se. Sei que ainda dói. Dói como chutar o vento. Dói como me endividar. Ainda sinto pontadas em meu coração, meu coração que é seu. Mas, por favor, fique bem. Estou aqui para te honrar. Eu te amo, pô. Sou seu descendente, a última fagulha sua entre os vivos.
     Agora me afasto. Em silêncio. Sem lágrimas. Pronto para provar ao mundo que o amor ainda existe, pelo menos em outros planos. Arrumo minha jaqueta, agarro meu cantil e não olho para trás.