29 de setembro de 2012

Inumano

There is blood in all the things I say.
("Blood on our hands", by Death from Above 1979)
Foto original: http://goo.gl/vdfXy

- Uma história da Terra de Confusões.

   A danificada cabeça de Chloe voltou-se para o horizonte em puro reflexo. Randy, perplexo com a convicção dos movimentos de sua hóspede, não deixava de fitá-la com seus apertados olhos. Não compreendia o apocalipse que aniquilava a mente da adolescente a cada dia passado, e tampouco entendia o que aquela faixa ensanguentada ao redor dos olhos dela significava.
   — Existem verdades aí fora, garoto — ela dizia com a ironia de ser cinco anos mais nova que o jovem adulto que a recolheu das ruas — Verdades as quais você não teve acesso. Você me disse que seus pais são vendedores de armas, que alimentam a guerra com carcaças de mortos. Disse que fugiu de casa para nunca mais vê-los. Não tiro sua razão... nunca tirarei, aliás. Mas você perdeu a valiosa oportunidade de entender muito mais desse mundo tóxico ao qual estamos expostos.
   De costas para Randy, a perturbada Chloe resolveu, depois de semanas vivendo no apartamento dele, retirar dos olhos as ressequidas bandagens que cheiravam a morte. Jogou-as no carpete, ainda virada para o horizonte de nuvens químicas e Sol ferido.
   — Vi muitas coisas, por mais nova que eu seja. Vi como as guerras enlouquecem o homem, deixam-o com atitudes bestiais e inconfessáveis. Você sabe que aqui dentro — e ela passou a mão sobre sua esquálida barriga — cresce um filho de algum soldado que me violou sem pudor e com toda a violência do mundo. Ainda me lembro dos braços musculosos dele empurrando meu rosto contra a parede e de seu... de seu sexo entrando em mim com a agressividade de um monstro. Nunca senti tanta dor: Meu espírito chorava, gania com as chagas abertas nele. E o soldado não teve dó, você sabe. Depois de tudo, espancou-me como se eu fosse uma criminosa, uma maldita.
   Randy sabia. O magricelo rosto de Chloe, quando a encontrou depois de uma infindável noite de bebedeira, estava dilacerado em cortes purulentos e inchaços nauseantes. Havia sangue por todo canto de seu corpo: Ele foi obrigado a banhá-la por horas para que aquela adolescente, coitada, tão nova, não perecesse em suas infecções e feridas. Pensava que toda sua revolta de adolescente não significava um átomo perto da vida desgraçada de Chloe.
   Existem muitos modos de se desgraçar, por sinal.
   — Você sabe que vi minha família ser morta por amigos desse estuprador. Outros soldados, tão animalescos quanto ele, que não sabem o que fazem e matam para cumprir a meta diária. Vi o presidente à minha frente, cuspindo em meu rosto e pedindo para nunca me tirarem daquela prisão. Saí de lá, sim, mas só porque fui julgada insana demais para conviver com alguém. Não queriam me matar, eu era uma jovenzinha facilmente violável. Antes daquele soldado, outros me violaram. Você sabe. E sabe que eu vi isso. Estive lá, totalmente sã e saudável, sentindo o desgosto de ser objeto — e a voz da adolescente tremulava cada vez mais, evidenciando o que seria um choro convulsivo — Depois de enjoarem de mim, jogaram-me na rua, onde fui estuprada outras vezes, inclusive por esse maldito soldado que, acima de tudo, quase me executou a socos e chutes. Vi isso tudo. Vi famílias jogadas em becos só porque suas casas eram estrategicamente posicionadas; vi execuções por motivos banais; vi um mundo de possibilidades se tornar lixo tóxico. E, o mais impressionante, ninguém sabe o porquê de toda essa barbárie. Uma guerra sem propósitos, que promete colocar bilhões em uma grande urna de cremação. De volta ao pó.
   — E eu vi isso tudo — ela continuava, cerrando os punhos com força o bastante para perfurar a palma de sua mão com as unhas — Vi coisa demais... e por isso...
   Ela se virou para Randy. O jovem sentiu sua coluna vertebral enrijecer, como que resfriada em nitrogênio líquido. Não pôde esconder seu espanto, expresso em uma feição contorcida e descrente.
   — Resolvi não ver mais — e Chloe, exibindo os dois poços sem fundo onde deveriam estar seus olhos, sorriu em escárnio. Sorriu porque, pelo menos, não poderia mais ver esse mundo horrível onde foi posta. Um mundo alicerçado em pólvora e em fogo; em destruição iminente. Ela já sabia o final da história: Só não queria lê-lo.

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