30 de outubro de 2012

Girassóis negros e balas de borracha

Foto original: http://goo.gl/AJ6vg

     "Isso só vai machucar", disse o tenente Ribas em nosso primeiro treinamento de contenção de manifestações. Ele empunhava uma espingarda de balas de borracha e estava prestes a nos ensinar sobre como a ponta elástica desse tipo de munição não perfura, mas tem grandes chances de desfigurar uma pessoa se for direcionada ao rosto de alguém. "Não é de verdade", ele continuou. Uma tatuagem de henna não é de verdade; não há como dizer que um projétil amassando o crânio de um universitário não é real.
     Está acontecendo uma manifestação a duas quadras daqui, na Avenida Paulista. Alunos e professores protestando contra os péssimos incentivos estatais para as universidades federais, pois já está longe de ser segredo que as corporações são quem financiam até mesmo vagas nessas instituições. É tudo uma grande teia nociva de aracnídeos gananciosos, e tenho certeza de que nunca saberemos de toda a verdade por trás das infinitas falcatruas que o dinheiro compra sem hesitar. Temos acesso a uma pequena parcela disso, no entanto é o bastante para enfurecer até mesmo o mais emaconhado e pacífico dos ripongos da FFLCH. E cá estou eu, pronto para lutar contra a própria justiça.

28 de outubro de 2012

Negativo e inegável



Livro: Cinquenta tons de cinza (2011), por E.L. James, publicado esse ano pela editora Intrínseca, com duas xícaras de chá da série Crepúsculo.

  "A autora publicou, inicialmente na internet e sob o pseudônimo Snowqueen's Icedragon, uma versão em capítulos desta história, com personagens diferentes e sob o título Master of the universe", diz o aviso logo abaixo do copyright de Cinquenta tons de cinza, o avassalador sucesso que, assumo, estava louco para saber como era. Ah, mas é claro que o boçal do Alaor aqui quase foi obrigado a não gostar da peça, e sei que isso vai gerar bafafá e pancada no octógono do Mínima Ideia, mas prometo que darei argumentos contundentes como a joelhada do Anderson Silva em Stephan Bonnar.

25 de outubro de 2012

Castelão

Imagem original: http://goo.gl/heOJ4

     Olhe a cara dele. Todo desajeitado, enrolado no cobertor e segurando uma pá maior do que ele. Uma risada inocente me escapa, e ainda bem que meu filho não pode me ver com clareza dali de cima.
     — 'Tá bom aqui, papai?
     — 'Tá sim, filhão! — e estendo a mão em um sinal positivo.
     Estou caducando, será? Mascar fumo dia e noite não está fazendo nada bem para meus dentes, mas pareço não considerar isso e continuo mascando. Devo estar velho demais para me abster de certos costumes, como o de sentar nessa varanda mascando fumo e fazendo carinho nos pelos ensebados do nosso vira-lata. Ô Sombra, você precisa de um banho, hein? Qualquer hora a gente vai lá na represa e você se limpa, ou algo parecido com isso. Ele parece sorrir quando digo isso e volto a observar meu filho no topo de seu castelo.

22 de outubro de 2012

Mais um texto do Botinhão.


Os olhos se fecham. O mundo sumiu.

Um convite para um drink... Um pedido. As observações feitas por quem tem questionamentos leves e solúveis. Um brinde. Observações absolutas feitas por outro alguém, com propriedade para confirmar aquilo que pensa com palavras motivadas pela experiência...
Os copos estão cheios mais uma vez. A paixão líquida em que a dúvida se desmancha, os temores se afogam e as certezas ganham cores... O branco dos sorrisos de pérolas contrastando com o batom vermelho. O branco dos olhos refletindo as luzes do ambiente enquanto as imagens tomam formas dentro deles. Tudo rodeado pela íris castanha da musa de tudo aquilo que é criado. Mais um copo e o mundo começa a rodar com certa arritmia.  Rápido e depois devagar, alternando a cada movimento. Existe uma sinestesia embriagada e poética em conseguir sentir o sabor de cada som, como se as palavras pudessem ser diferenciadas entre doces e amargas. Não pelo significado, mas sim pela própria sonoridade.

21 de outubro de 2012

SummerTime

Artista: The PX Corporation
Foto original: http://goo.gl/ctlJ9

Estamos prestes a perder uma hora, não é novidade, mas como me manter satisfeito sendo que eu e todas as outras pessoas com quem convivo não precisam perder uma hora, e sim, que seu dia dure quarenta e oito horas?

A carta retirada pela cigana louca da praça da Sé previa mais correria em um mundo que está sempre excedendo o limite de velocidade. A Bovespa vai girar    e rodar em translações mais rápidas, muito dinheiro vai rolar e pra isso o dobro de gente vai ralar e novamente girar as catracas do metrô, gerando o stress que, aumentando em nível exponencial, vai injetar mais loucura no chamado cotidiano.

17 de outubro de 2012

Elas e eles

Foto original: http://goo.gl/0UtVh

   Talvez hoje não seja o melhor dia para andar sozinho na rua. Está tudo muito escuro, muito sem luz. E é como se uma mão feita de éter pressionasse minha cabeça contra a porta dos fundos, e eu saio. E desbravo o mundo de trevas à minha volta, tentando encontrar meus amores renegados e meus demônios interiores nele. Porque eu poderia muito bem fazer uma orgia com todos eles. Todas elas. Ah, só um pouco de diversão, por que não? Parece extremo demais, talvez eu não aguente? Não acho amores, não acho demônios. Todos se escondem dentro de mim, e provavelmente terei que abrir minhas entranhas para encontrá-los, para essa estranha orgia de éter que tanto desejo aqui, no meio da rua, no asfalto gelado da noite. Lava petrificada de minha Vesúvio, pessoas que deixaram de existir e ficaram para sempre como estátuas. Enfileiradas em meus órgãos, exibindo seus prazeres. Jogando suas roupas pelas paredes de meu fígado, abrindo suas pernas e brincando de amar dentro de mim. Meu esôfago, sôfrego, parece querer colocar tudo para fora, mas engulo a saliva e me determino a calma, pois a orgia está acontecendo e eu não posso me deixar levar assim. Não sei onde posso parar se me levarem. Minha cabeça vai para lugares inimagináveis, sonhos de éter como a mão, como a orgia. Vejo beijos lascivos e quentes nas pessoas que rejeitei. Vejo socos e pontapés nos diabos que me encarceram. Tudo faz parte da mesma decadência, veja só. Orgia é decadência. Talvez hoje não seja o melhor dia para voltar para casa.

16 de outubro de 2012

Amaterasu 天照



Ela era uma deusa, só depois de muitos anos vivendo sobre seu afável lado consegui constatar. Agora as dúvidas despareceram no ar, assim como dentes-de-leão soprados à deriva nos campos ensolarados do verão.

Impressiono-me como mesmo as pessoas carregadas de experiência são facilmente surpreendidas pelas possibilidades inusitadas da vida, também conhecidas como milagres, e isso destrona qualquer ego por menor que seja.

15 de outubro de 2012

O canto


Sai do canto e canta.
Cantarola e não se enrola.
Canta tanto mas não se cansa,
sei que tenta me atentar.

Cantiga pra dormir atento,
cântico pra cruzar cânions.
Seu canto rima tato com cama:
Conta comigo pra cantar.

14 de outubro de 2012

Hunky Dory, o palhaço

Foto original: http://goo.gl/0RriK

Ei, Hunky Dory,
Por que tão longe de nós?
Não se demore.

Seu rosto branco
Esconde algo de nós?
Ei, seja franco.

E seus adornos?
O seu nariz vermelho
de choro morno;

10 de outubro de 2012

HipocR$ia

Foto original: http://goo.gl/GoRo6

"Você consegue colocar um preço na paz?"
Peace Sells, por Megadeth.

As formigas (R$0,15 a unidade), em sua implacável trilha, ameaçam o bolo de laranja (R$2,99) que acabei de comprar na padaria. Espano-as com a ponta de meus dedos e elas acabam desistindo. Corto um pedaço do bolo, coloco-o em um pratinho de sobremesa (plástico, R$4,00) e sento no sofá (camurça, na cor marfim, conjunto de dois e três lugares por R$749,99 na promoção daquela segunda-feira) para assistir um pouco de televisão (de tubo, 14 polegadas, R$349,00). Esportes? Não. Há muito dinheiro desnecessariamente envolvido nisso. Desenhos animados? Não. Meses de dinheiro para quinze minutos de risadas amarelas. Ah, Economia. Como vai a NASDAQ? E a seca nos Estados Unidos, vamos realmente ter uma baixa na importação de salsichas (R$7,99 o pacote)?

9 de outubro de 2012

Os goles de sangue


E quinhentos goles eu bebi.
Da cerveja, do uísque, bebi.
Das fontes inesgotáveis de sangue,
Os quilombos da atualidade,
Os goles secos e amargos
Do rubro líquido interior,
Que corre nas veias dos braços,
Nas veias das pernas,
Nas jugulares e artérias.
Corre solto, corre livre.

8 de outubro de 2012

00:23

Artista: http://franca64120.deviantart.com/
Foto original

Não dá para dormir.
Na verdade é uma mistura equivalente de não posso e não consigo, as substâncias que acompanham o líquido não posso, são alguns sentimentos:

Não posso esquecer.
Não posso perdoar.
Não posso perder.
Não posso amar.


Elas potencializam minha cabeça, como taurina contendo gamas de informações hipotéticas e inúteis, sobre o passado, o presente e o futuro. E simplesmente existe a outra metade do frasco, o duro e pesado não consigo, com o gosto mais azedo que limão taiti.

6 de outubro de 2012

VS.L0V3

Conto inspirado em "Love interruption", por Jack White. (letra) (vídeo)

Foto: http://goo.gl/Z53Ng

    O que é isso? Um dente meu? No chão?
    Maldito Amor.
    Levanto-me, ainda sentindo a gengiva borbulhando em sangue fresco, e ergo uma faca dessa cozinha na direção dele: Ele que acaba com nossa vida sem que possamos notar; ele que, como um sedativo, inebria-nos para que façam barbaridades das quais não temos controle; ele, o Amor, que acabou de arrancar um dente meu a pancadas.

5 de outubro de 2012

O rádio

Parece que dizes
‘Te amo, Maria.’

A música tocava no rádio, enquanto as lágrimas inundavam meu rosto e me impediam de enxergar com clareza as fotografias que eu havia desenterrado da gaveta. Parece incrível como só nos lembramos de fotografias em momentos de infelicidade ou alegria extremas.

Na fotografia
Estamos felizes

Como éramos felizes! Os dias se passavam como fossem minutos. O tempo correu demais, minhas pernas se cansaram. O tempo fugiu de mim.

Te ligo afobada
E deixo confissões
No gravador

O tempo fugiu de mim, mas a paixão permanece. Meus poros, meu sono, meu peito, todos pedem por ti, por tua companhia de volta. Por um amor que deixou marcas e que, parece, não foi-se embora de todo.

Vai ser engraçado
Se tens um novo amor

Rio, nervosa comigo, com meus pensamentos. É uma risada maluca, de insanidade. Penso mil bobagens, senilidades. Ainda metade de mim decide ir ao espelho, dar um tapa em meu rosto, mas...

4 de outubro de 2012

Fim

Foto original:  http://tinyurl.com/942zrav
Artista: http://rijyvik.deviantart.com/
A fina névoa rastejava pelo chão, como era de costume para aquele horário. O vento soprava a melodia dos mortos em sublimes cantos. À frente existia um portão enferrujado, e as inscrições em uma placa adornada sobre a estrutura não deixavam dúvidas: ali era o Fim. Nas extremidades acima do portão, acima dos tijolos furados, dois anjos feitos de mármore estavam arqueados, com as mãos levantadas para o céu, acolhendo as novas almas que ali eram descartadas, mas algumas aborrecidas insistiam em ficar na copa das árvores fúnebres pelo local.

Neste típico lugar, recheado com a atmosfera melancólica dos ultrarromânticos, vive um homem e sua sina.

Você tem a mínima ideia do que O Coveiro pode te ensinar?

Sob o solo de um piano rústico ele aparece, com sua cartola e capas escuras que durante a noite o torna uníssono com o tempo. Carrega na mão direita uma pá lendária que abriu a cova de seiscentas pessoas — alguns ousam dizer que ele muda de rosto para que não reconheçam o homem que frequentemente rouba adornos e joias dos mortos.

Era mais uma noite de trabalho, e o velho preferia o silêncio da noite. Abriu o portão do cemitério como se estivesse entrando em casa, estocou a pá no chão, suspirou e disse:

— Olá, eternos amigos. Sentiram minha falta?

A quietude plena era a resposta que o mesmo já esperava.

Pois bem. Dirigiu-se para o norte do cemitério, mancando pela indisposição da perna esquerda. Chegando no local, colocou a mão no bolso do sobretudo e retirou um papel amassado com o nome das pessoas que iriam precisar das covas amanhã:

— Heithor Annanias Portela, 16 anos. Tiro de fuzil no meio da testa, mais um com caixão lacrado. É, os seres humanos me surpreendem demais... Hipócritas lacrados em redomas de amor próprio ousam te culpar, dona Morte, pelo trágico fim que lhes silencia a vida.

Sim, ele era apaixonado pela Morte e de alguma forma tinha um caso com tal ser. A história de como ambos se conheceram fica para um outro dia, mesmo porque o velho homem está ocupado remoendo a terra para receber o jovem. Já não era amargura o que aquele velho coração sentia, pois de alguma forma ele entendia que sua maldição era uma benção. Viver recluso da sociedade o poupava da loucura extrema que é viver uma vida normal.

O coveiro, ao contrário de um médico ou um socorrista, não trabalha com a dualidade entre a vida e a morte. Ele só conhece a Morte, o que, na opinião do velho que parou de cavar e soltou uma cusparada no chão, era a mais sublime tarefa. A partir do momento que você se casa com a morte, começa a ver a vida com outros olhos, ver a beleza nos momentos únicos, desde o primeiro choro ao nascer até o último suspiro.

A cova já estava bem profunda, pronta para acolher o jovem para o resto da eternidade, e em um súbito movimento O Coveiro olhou para o relógio e suas pupilas dilataram.

O mesmo bradou para a platéia invisível:

— Cessem a filosofia e comecem a cantoria, porque minha amada esposa está chegando! Levantem-se de suas covas e prestem respeito à mais bela, pois hoje é dia do Cortejo Fúnebre!

"E assim como um sonho
todas as almas acordaram
e começaram a bailar na eternidade.

Em oposição a lua uma sombra,
talvez uma silhueta amorfa
em tons femininos únicos.

E antes que eu pudesse questionar
suas asas me mostraram a verdade
a origem que eu tanto repudiei.

Hoje eu acredito.
Hoje eu vejo,
muito mais do que meus olhos podem ver"

— Caderno de relatos, O Coveiro.

Continua.

3 de outubro de 2012

"Oh, lady."

Foto original: http://goo.gl/uEalx

    Oh, lady.
    Pensei que não viria mais: Ensaiei essa música para você. Comece a dançar, por favor, isso. Uma nota por vez, devagar, mexa esses fartos quadris que Deus te concedeu em um dia feliz. Isso mesmo. Esse piano velho sentiu saudades de seu molejo. 'Tá rangendo de amores por você.
    Eu sei, pode falar, lady. Atrás dessa porta esconde-se a danação do mundo, e estamos prestes a sumir no apocalipse bíblico. Só quero que você dance, movimente essas coxas como se elas tivessem sido criadas para essa música. Com amor, isso. Com paixão, ofereça-se à melodia porque ela te pede. Te anseia, te implora para meus dedos enfraquecidos pelo tempo nada misericordioso.
    Enquanto você se lambuza na música, eu sei, você fala sobre todos esses governantes que vieram da mesma fábrica de pólvora. Não quero saber. Quero sua dança, seu corpo cansado de tanta devoção. Danem-se todos os engravatados que exalam o mesmo cheiro de maldição: Eles não dançam como você. Eles não requebram como você. Não acredite que um dia mudará qualquer mundo além do meu.

1 de outubro de 2012

Derradeira visão

Como dois exércitos opostos, nossos lábios se digladiavam e se expunham e se enroscavam em um completo movimento de loucura. Os dentes chegavam a estalar, e arranhavam as gengivas, e sopravam carícias violentas, feridas internas, sentimentos sem nome, instintivos e selvagens. A selvageria de nossos amores sôfregos e bêbados se estendia por um tempo que parecia não ter fim. Havia muitas mãos, e pernas, e pele e muitos de nós em nós dois. O chão ardia ao toque do nosso amor, a lareira não era nada comparada aos nossos corpos. E então houve uma pausa.