7 de setembro de 2012

Era (mais) uma vez

  Era uma vez a moça que narra essa história sob o perturbado e descrente ponto de vista dela. Ela, que não era princesa nem fada (mas era madrinha de dois casamentos), passou pela vitrine de uma joalheria e deixou-se engraçar pelos anéis cravejados de cristais das mais diferentes cores. O atendente da loja — o único homem daquele lugar, cobiçado e cortejado por todas as outras atendentes, pela gerente e até pela dona da franquia — engatou uma conversa com a narradora, que deixou-se engraçar pelos cabelos louros e corpo bem delineado por expressões suaves e viris. Ela, coitada, pensou que ele era um príncipe.
  Não era.
  Claro que não, essa baboseira não existe.
  Ele deu o cartão da joalheria para ela, que agradeceu modestamente com uma irônica mesura. Foram poucos dias até que os dois acabassem se esbarrando mais uma vez naquela movimentada alameda do shopping center. A narradora confessou que era caixa do cinema e o — entre muitas aspas — príncipe acabou por convencê-la a conseguir um par de ingressos para o filme mais desinteressante que estivesse passando. Por motivos óbvios: Ele, ao lado dela, não tinha a menor pretensão em ver o filme.
  É fácil imprimir dois ingressos de cinema e alegar que foram comprados com aqueles tíquetes promocionais. Filmes ruins assim só são assistidos pelos parentes dos atores e por quem ganha promoções.
  O primeiro beijo aconteceu lá dentro, e ela nem estava dormindo para que parecesse um conto de Bela Adormecida. O segundo beijo também, e o terceiro, e o quarto. E o décimo. E no centésimo beijo eles já estavam comemorando um mês de namoro. Na primeira transa, cinco meses (ela era muito recatada). Na primeira viagem juntos, um ano.
  Agora eu poderia terminar a história dizendo que eles viveram felizes para sempre, mas não. Não foi assim.
  O Lobo Mau assoprou com sua bocarra e desmantelou a casa de palha que era o coração dela. O príncipe com mais aspas ainda estava se futilizando brutalmente a cada dia que passava. Fora do campo de visão da narradora havia beliscos, apertões e jantares realizados com outras mulheres.
  Bruxas. Bruxas que envenenaram a relação.
  A Gata Borralheira dentro de casa, quando descobriu o que estava sendo enevoado logo à sua frente, desabou em lágrimas que a afogaram. Suicídio era uma opção: Quantos volts tem o choque de descobrir que o mundo não é um conto de fadas? O deus grego que habitava sua casa era nada mais do que um ímpio, um ser amorfo mandado por Hades para incendiar tudo que levava o nome dessa ingênua e infantil narradora.
  A relação terminou em meio a tapas dela e socos dele. O príncipe — de tantas aspas que não caberiam em uma folha de cartolina — saiu ileso, só com o orgulho ferido; ela tem nas costas a cicatriz do corte que a mesa de centro fez quando se quebrou com o impacto, logo após ele empurrá-la com bestialidade. A Bela e a Fera. A Fera, desista, não tem coração. Segue instintos. Quer sexo fácil e carne crua.
  Quer sangue.
  Quer o coração da Bela dentro de uma caixa. Ou essa seria a Madrasta Má?
  O Padrasto Mau.
  A história ainda não acabou.

   Era mais uma vez esse casal, após quinze anos. Ele cuidava de um filho, de uma casa e de uma esposa; a narradora ainda era solteira e a cicatriz nas costas ainda era grotesca. Acabaram no enésimo beijo e em uma transa no estacionamento de um supermercado (ela já não era mais tão recatada). Ele não deixava de ser uma obra de arte esculpida por Michelangelo, e ela sabia que não se deixaria engraçar por aquele homem mais uma vez.
  Meses depois, a narradora era a amante número cinco, atrás de quatro valquírias exuberantes e na frente de três ninfas desavisadas. Todas estavam atrás da submissa esposa. O príncipe — de aspas o bastante para encher o banco de dados da Caixa Econômica Federal — espancava suas nove fêmeas como se isso fosse rotineiro e encontrado em qualquer esquina.
  E não é? Isso aqui não é conto de fadas.
  As nove mulheres se uniram. Armaram-se de facas e canivetes e cada uma tem um pedaço do príncipe em suas casas até hoje. Desistiram, então, de ter qualquer coisa com uma pessoa que tivesse algo pendurado entre as pernas. Elas tinham amor para dar e ninguém parecia querer receber. Ficaram juntas. Fizeram entre si um generoso rodízio de seus amores entalados.
  Estão felizes com isso até hoje.

   Algum problema?
  O seu conto de fadas não tem violência doméstica ou lesbianismo?
  Tudo bem, isso aqui não é um conto de fadas. E nem quer ser. Mas espero que elas vivam felizes para sempre. Quem não espera?

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