6 de setembro de 2012

Papo-cabeça



Aquele era o metrô de São Paulo às cinco e meia da tarde, andando resfolegante por causa do peso absurdo que sustentava: Pessoas e mais pessoas estavam espremidas lá dentro como aqueles óctuplos no útero da mãe. Cheias de sobrancelhas arqueadas e resmungos saindo por entre os dentes cerrados, aquelas pessoas e aquelas mais pessoas se fundiam em seus mundos físicos, formando mundos maiores e não menos particulares: O mundo do vagão um, o mundo do último vagão, e até mesmo o mundo do estranho vagão que fica um pouco mais vazio do que os outros sem um motivo óbvio. Peguemos o mundo do vagão um para esse excerto de eternidade, tudo bem para você? Não? Beleza, então a galera do fundão. Pode ser? Então tá.
A maior parte das pessoas espera que o último vagão esteja vazio, e por isso a maior parte das pessoas está exatamente nele. Ninguém se importa mesmo assim, e a ilusão do último vagão estar vazio permanece quase como uma lenda urbana. E lá estava ele, lotado de gente que não sabia se conseguiria descer na estação desejada.
A de rosa chama Heloísa e a de amarelo recebeu o peculiar nome de Alexandria. Como toda boa Alexandria, aquela carregava vários livros na mão. Faculdade. Enfermagem, como a de sua amiga. Conversavam sobre cabeças expostas em mesas geladas de metal como se falassem de um banquete servido em um hotel Hilton: Com fascínio e certa água na boca.
- Não sei por que não deixaram tirar foto da cabeça – Heloísa dizia, espremida entre um homem branco, grande e peludo (Um panda?) e uma fisiculturista que reluzia como cobre na luz do metrô. Aquele era um dia de pouca sorte para ela – Ficaram falando que “ah, essa pessoa um dia teve família, foi amada por muita gente”, e blá, blá, blá. Enquanto isso, tem nego tirando foto de gente assassinada feito água por aí.
A conversa nauseava muita gente por ali. Uma das poucas sentadas chama Fabiana e desmaia se ver groselha no chão: O papo sobre cabeças descoladas do corpo quase a fez botar suas barras de cereais e pedaços de melancia na calça de alguém de tão enojada que estava. Ou seria enjoada? Ou seria os dois? Ela não se importava, estava mais concentrada em botar a mão na frente da boca e pensar em cabeças com pessoas vivas embaixo... até que não deu mais.
- Vocês podem parar de falar sobre isso, por favor? – Ela gritou para a dupla de jovens com muito medo de abrir a boca e de repente... ela nem quis pensar na possibilidade.
- Olha, moça, o metrô é público – Respondeu Heloísa com sua habitual arrogância.
- Esse papo sobre gente morta não é bom para ninguém – Surgiu uma voz quase inexistente no canto do vagão: Ele era Umberto e odiava pensar em trabalho (era coveiro) enquanto não estava nele.
E, meu Deus, quando fui ver já estava toda a galera do fundão falando como uma grande assembleia romana. Uns a favor da cabeça na mesa; outros a favor da cabeça no pescoço de alguém. Uma simples tarde paulista de estresse contido se transformou em uma disputa moral de proporções homéricas.
Ela era Joana e já viu muitos filmes de terror: Achava que quem não aguentava um assunto desses era uma bichinha. Ele, por sua vez, é uma bichinha que chama Otávio e disse que não tinha problema algum com cabeças desprovidas de corpos. Ela se proclamava pedagoga e falava que essa discussão boba só acontecia porque poucos foram ensinados quando pequenos que pessoas morrem e viram só pedaços de carne. Ele, médium, concordava e afirmava que nosso corpo é só um invólucro para algo muito mais grandioso, e que essa carne sozinha não representa nada depois da morte. Ela ainda era Alexandria e levantou a mão para cumprimentar o médium pelo argumento.
Já estávamos na Sé, olha só: Da linha azul, metade da galera do fundão migrou para a vermelha ainda colocando a cabeça desencorpada em um altar. Ele chama Ricardo e disse que se doaria a uma faculdade após a morte. Ela, que chama Luana, aproveitou a deixa e revelou que seu próprio pai era uma cabeça de faculdade.
- E o que aconteceu? – Umberto perguntou.
- Alguém perdeu a cabeça e perdeu a cabeça – E Luana desatou a rir.
E não era que a CPI da Cabeça ainda tinha muito neurônio para queimar? Ela é uma pastora evangélica e disse que a vida humana deveria ser prezada pela eternidade. Ele chama Patrick e proclamava que a sociedade não deveria nem mesmo envelhecer: Os velhos deveriam ser exterminados, como acontece no reino animal. Eles eram velhos saudáveis e discordavam.
Já na Mooca, alguém se lembrou do controle de natalidade. A vida humana era importante, mas já não havia bilhões demais de vidas importantes? Ela disse que se chamava Giovanna – mas é Gerusa – e disse que se congelaria para poder ser reanimada no futuro. Ela, que continuava sendo Heloísa, a chamou de egoísta e quase a agarrou pelo pescoço se não fosse pelas dezenas de pessoas que a separavam só pela presença no vagão apertado. Outra Giovanna – essa tinha mesmo esse nome - disse que já havia abortado uma criança. Aborto, Giovanna? Qual outra polêmica iria levantar: Células-tronco? Eugenia? Clonagem? Ah, essa vida humana.
Quase em Itaquera, só sobravam umas dez pessoas no vagão discutindo a ética que os médicos (não) seguiam na saúde pública. A cabeça foi deixada de lado na mesa de discussão. Era um problema idiota – uma questão, talvez, sem pé (pois tinha cabeça) – que acabou desembocando no que realmente importava: Criticar o governo, como sempre. Perto de parar na estação final, o metrô estacou no meio do túnel. Depois de vinte minutos de paralisação, o motorista pediu para que, por favor, todos os passageiros se dirigissem à estação pela via emergencial. Ao chegar ao destino, foram verificar o que havia causado a paralisação. Eles disseram ser um objeto; eles viram uma cabeça. Sem mais nem menos, lá estava ela, como se tivesse sido conjurada pela conversa do último vagão. Eles só se entreolharam: Nunca tocaram no assunto com seus filhos, seus amigos, seus pais. Aquele era o metrô de São Paulo às seis e quinze, parado por causa de uma cabeça, e ninguém nunca soube disso a não ser aqueles passageiros.
Hoje em dia, eles riem se alguém fala sobre cabeças de gado no canal rural; eles apertam os olhos quando dizem que o Brasil será cabeça-de-chave da Copa; eles contraem os músculos se veem uma pessoa avoada e pensam que a cabeça delas está na Lua. A cabeça pode estar na Lua, eles pensam logo depois, mas pelo menos ainda está no pescoço. E, sim, Heloísa e Alexandria trancaram a faculdade. Trancaram porque estavam sem cabeça para essas coisas. Até mesmo eu, que sempre fui tão cabeça-dura, depois disso fiquei molinho, molinho.

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