8 de setembro de 2012

Contemplando a solidão

Conto inspirado na foto abaixo.

Foto:  http://rabbit888.deviantart.com/#/d5dt5wm

   "Existe certa solidão que não dá para negar", ela pensava enquanto lambia um modesto picolé gelado de cores quentes. Frase de livro, ela concluía. Que livro? Já leu tantos que já não sabia mais diferenciar um do outro: Todos faziam parte de um só mundo. O mundo dela.
   Não é porque ela tem uma silhueta cheia de curvas e um olhar fascinante que essa história tem que ser um romance. Bem longe disso, aliás. Ela precisa ter algum sentimento? Não a moça, mas a história. Pessoas têm sentimentos, por mais que escondam por trás de um rosto impassível. Já histórias... bem, podem ser só uma contemplação, não podem? Simbolismo.
   Sentada absolutamente isolada do mundo tão onipresente, ela continuava lambendo o picolé. Procurava, sobre uma toalha xadrez que a inibia do contato com a urticante grama do parque, aonde havia parado naquele livro. Mais uma vez: Que livro? Ela não guardava nomes, autores, personagens. Guardava histórias. Sabia que o assassino serial estava prestes a detonar uma bomba na casa onde acontecia o Natal de sua família, mas o nome desse assassino não pertence a ela. O que importa é o que está por trás dessas vis e primárias convenções sociais, como o nome que recebemos de nossos pais ou as roupas que nos dizem para usar.
   O que está por trás disso tudo? A verdade, pode-se dizer. Para ela, nada além de uma contundente verdade que a faz entender o onipresente mundo com cada vez mais abrangência. Livros a faziam onipotente, e ela queria ser onipotente; ser uma deusa. A deusa de seu próprio planeta que só existe naquele intervalo cósmico entre sua retina e as palavras impressas de um livro. E o picolé tardava a terminar.
   falei que isso não é um romance. Nenhum homem desavisado vai abordá-la e puxar assunto em relação o livro que ela folheia com a mesma facilidade que uma toupeira tem em escavar terra bruta. Nem uma mulher, nem ninguém: Ela está sozinha. Isso é uma meia-verdade, aliás. Ela está com um livro, e quem está com um livro nunca está sozinho. Ela está sempre acompanhada de anônimos vivos, mortos, felizes, tristes mas, sobretudo, humanos como ela. E por isso sorri enquanto está no epicentro de sua inegável solidão.
   "Essa solidão, então, é aquela onde você se conforta e com quem você se casa quando mais precisa de um amante compreensivo", assim terminava a citação do livro. Ela olhava a bicicleta à sua frente, a bicicleta que usava para chegar àquele parque, carregando um livro em sua cestinha de alumínio, e talvez fosse uma boa ideia aposentá-la: Por que não patins? Por que não mudar? Uma mordida final no picolé e ele se desfaz nos brilhantes lábios madrepérola. Ela achou a página. Ela era um anjo descalço e de cabelos com a cor do Sol em seu próprio paraíso e não fazia parte de um romance. Era imaculada como um livro envolto em plástico, o tipo de livro que não dura nas mãos dela. E estava ali para ser contemplada. Por quem? Por sua solidão, sua amante, sua esposa sem romance algum. E ela começou a ler. "O assassino, com o controle remoto nas tremulantes mãos que transpiravam sem cessar, deslizou o polegar sobre o botão que detonaria aquela casa. Queria ir para os noticiários carregando mais mortes que Hitler, mas para isso ainda teria que se livrar de muito mais entulho humano. Ele tinha sua própria raça ariana. Ele era sua própria raça ariana, e ele apertou o botão".

Um comentário:

Gi Sequeira disse...

Obrigada pelo conto.. ;)