30 de outubro de 2012

Girassóis negros e balas de borracha

Foto original: http://goo.gl/AJ6vg

     "Isso só vai machucar", disse o tenente Ribas em nosso primeiro treinamento de contenção de manifestações. Ele empunhava uma espingarda de balas de borracha e estava prestes a nos ensinar sobre como a ponta elástica desse tipo de munição não perfura, mas tem grandes chances de desfigurar uma pessoa se for direcionada ao rosto de alguém. "Não é de verdade", ele continuou. Uma tatuagem de henna não é de verdade; não há como dizer que um projétil amassando o crânio de um universitário não é real.
     Está acontecendo uma manifestação a duas quadras daqui, na Avenida Paulista. Alunos e professores protestando contra os péssimos incentivos estatais para as universidades federais, pois já está longe de ser segredo que as corporações são quem financiam até mesmo vagas nessas instituições. É tudo uma grande teia nociva de aracnídeos gananciosos, e tenho certeza de que nunca saberemos de toda a verdade por trás das infinitas falcatruas que o dinheiro compra sem hesitar. Temos acesso a uma pequena parcela disso, no entanto é o bastante para enfurecer até mesmo o mais emaconhado e pacífico dos ripongos da FFLCH. E cá estou eu, pronto para lutar contra a própria justiça.
     E, se não é nas Forças Armadas nem na Legislação onde encontramos a justiça, onde ela está? Nesse tipo de infantil manifestação?
     Até a justiça é injusta nesses dias turbulentos.
     Nossa viatura estaciona a um quarteirão da massa. Somos descarregados e nos preenchemos de munição e de vazio no coração. Pois, marchando em direção aos manifestantes, o que vejo são jovens e adultos que só gostariam de ter dignidade. Pintar o rosto e gritar no centro de São Paulo não é nada animalesco se comparado aos prédios abandonados e poeirentos das universidades estorvadas pelo descaso governamental, vamos combinar. Eles sabem disso e querem laboratórios para aulas práticas; querem patrocínio terceirizado para todo tipo de conhecimento; querem um ano inteiro sem greve. Eles querem o retorno de tanto estudo e tantos fins de semana perdidos. Tantos amores necrosados, tanta diversão reprimida, tantas realizações postergadas, e o que eles recebem é uma docência prejudicada pelo desprezo.
     Eu, munido de cassetete e espingarda de dolorosa mentira, estou rumando ao combate a favor de tanta zorra com o futuro de jovens tão promissores.
     Meu capacete me protege das pedras e das tábuas, mas nunca vai me privar de pensar como meu ofício foi desviado de seu curso. E olho para meus companheiros tão obstinados, prontos para a guerra, e penso que animais assim deveriam ter nascido na Alemanha nazista e ficado por lá, bem longe de tantos homens e mulheres que só querem estudar justamente. O primeiro-soldado Justino, o segundo-tenente Andrade, o cabo Mattos, todos me confessaram a felicidade arrebatadora que a iminência do conflito borbota em seus interiores, como girassóis negros que sorriam na direção dos impulsos mais odiosos.
     Em meio a esse tornado de vozes, marchas e cartazes, mordo meu lábio inferior por baixo do capacete e ninguém vê. Jovens universitários que pagaram anos de cursinho preparatório para estarem onde intelectualmente estão se degradam em prol de um direito que já deveria estar subentendido. Só que existe muito mais coisa subentendida nessa história, e a primeira delas é que o dinheiro compra o que você quiser. Pode não comprar sua felicidade, mas compra a tristeza de qualquer outra pessoa.
     Pode acreditar.
     Faltam poucos passos para eu ficar mais uma noite sem dormir, mais uma semana mergulhado na inquietude. E não há dinheiro algum que irá comprar a paz que estarei jogando fora em cinco, quatro, três, dois, um.

Continua.

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