4 de outubro de 2012

Fim

Foto original:  http://tinyurl.com/942zrav
Artista: http://rijyvik.deviantart.com/
A fina névoa rastejava pelo chão, como era de costume para aquele horário. O vento soprava a melodia dos mortos em sublimes cantos. À frente existia um portão enferrujado, e as inscrições em uma placa adornada sobre a estrutura não deixavam dúvidas: ali era o Fim. Nas extremidades acima do portão, acima dos tijolos furados, dois anjos feitos de mármore estavam arqueados, com as mãos levantadas para o céu, acolhendo as novas almas que ali eram descartadas, mas algumas aborrecidas insistiam em ficar na copa das árvores fúnebres pelo local.

Neste típico lugar, recheado com a atmosfera melancólica dos ultrarromânticos, vive um homem e sua sina.

Você tem a mínima ideia do que O Coveiro pode te ensinar?

Sob o solo de um piano rústico ele aparece, com sua cartola e capas escuras que durante a noite o torna uníssono com o tempo. Carrega na mão direita uma pá lendária que abriu a cova de seiscentas pessoas — alguns ousam dizer que ele muda de rosto para que não reconheçam o homem que frequentemente rouba adornos e joias dos mortos.

Era mais uma noite de trabalho, e o velho preferia o silêncio da noite. Abriu o portão do cemitério como se estivesse entrando em casa, estocou a pá no chão, suspirou e disse:

— Olá, eternos amigos. Sentiram minha falta?

A quietude plena era a resposta que o mesmo já esperava.

Pois bem. Dirigiu-se para o norte do cemitério, mancando pela indisposição da perna esquerda. Chegando no local, colocou a mão no bolso do sobretudo e retirou um papel amassado com o nome das pessoas que iriam precisar das covas amanhã:

— Heithor Annanias Portela, 16 anos. Tiro de fuzil no meio da testa, mais um com caixão lacrado. É, os seres humanos me surpreendem demais... Hipócritas lacrados em redomas de amor próprio ousam te culpar, dona Morte, pelo trágico fim que lhes silencia a vida.

Sim, ele era apaixonado pela Morte e de alguma forma tinha um caso com tal ser. A história de como ambos se conheceram fica para um outro dia, mesmo porque o velho homem está ocupado remoendo a terra para receber o jovem. Já não era amargura o que aquele velho coração sentia, pois de alguma forma ele entendia que sua maldição era uma benção. Viver recluso da sociedade o poupava da loucura extrema que é viver uma vida normal.

O coveiro, ao contrário de um médico ou um socorrista, não trabalha com a dualidade entre a vida e a morte. Ele só conhece a Morte, o que, na opinião do velho que parou de cavar e soltou uma cusparada no chão, era a mais sublime tarefa. A partir do momento que você se casa com a morte, começa a ver a vida com outros olhos, ver a beleza nos momentos únicos, desde o primeiro choro ao nascer até o último suspiro.

A cova já estava bem profunda, pronta para acolher o jovem para o resto da eternidade, e em um súbito movimento O Coveiro olhou para o relógio e suas pupilas dilataram.

O mesmo bradou para a platéia invisível:

— Cessem a filosofia e comecem a cantoria, porque minha amada esposa está chegando! Levantem-se de suas covas e prestem respeito à mais bela, pois hoje é dia do Cortejo Fúnebre!

"E assim como um sonho
todas as almas acordaram
e começaram a bailar na eternidade.

Em oposição a lua uma sombra,
talvez uma silhueta amorfa
em tons femininos únicos.

E antes que eu pudesse questionar
suas asas me mostraram a verdade
a origem que eu tanto repudiei.

Hoje eu acredito.
Hoje eu vejo,
muito mais do que meus olhos podem ver"

— Caderno de relatos, O Coveiro.

Continua.