5 de outubro de 2012

O rádio

Parece que dizes
‘Te amo, Maria.’

A música tocava no rádio, enquanto as lágrimas inundavam meu rosto e me impediam de enxergar com clareza as fotografias que eu havia desenterrado da gaveta. Parece incrível como só nos lembramos de fotografias em momentos de infelicidade ou alegria extremas.

Na fotografia
Estamos felizes

Como éramos felizes! Os dias se passavam como fossem minutos. O tempo correu demais, minhas pernas se cansaram. O tempo fugiu de mim.

Te ligo afobada
E deixo confissões
No gravador

O tempo fugiu de mim, mas a paixão permanece. Meus poros, meu sono, meu peito, todos pedem por ti, por tua companhia de volta. Por um amor que deixou marcas e que, parece, não foi-se embora de todo.

Vai ser engraçado
Se tens um novo amor

Rio, nervosa comigo, com meus pensamentos. É uma risada maluca, de insanidade. Penso mil bobagens, senilidades. Ainda metade de mim decide ir ao espelho, dar um tapa em meu rosto, mas...
Me vejo ao teu lado
Te amo?
Não lembro

Não lembro, estou confusa, amor. Amor? Já não sei o que é, nem como chamar. E o que dizer pra minha língua, acostumada como está com teus carinhos e chamar-te ‘amor’?

Parece dezembro
De um ano dourado

O tempo já não é tempo. Não me lembro desde quando estou aqui, nem o que foi que aconteceu. Amor, que vestido vermelho é este que visto? E esta flor em minha mão? Você?

Parece bolero
Te quero, te quero

Bolero! Ah, sim! Nossas danças singelas, nossos bailes privados, éramos enamorados, amor. Quero isso de volta. Diz-me que volta, que te espero. Espero.

Dizer que não quero
Teus beijos nunca mais
Teus beijos nunca mais

De teus beijos não me esqueço, nem posso. O corpo guarda as marcas, mais nítidas que os retratos, mais vívidas que as lembranças, mais fortes que a saudade.

Não sei se eu ainda
Te esqueço de fato

Acho que não, amor. Meu corpo não mente, eu te quero, e espero ainda. O tempo passa, eu sei. Mas não sei mais quanto tempo pode passar.

No nosso retrato
Pareço tão linda

Ah, meus olhos embargados! Não vão me impedir de me ver contigo nos nossos tempos. Eram nossos e ainda o são para mim.

Te ligo ofegante
E digo confusões no gravador
É desconcertante
Rever o grande amor

Onde eu estava com a cabeça? Não devo ligar. Ou devo? Não sei. Minha cabeça confusa assumiu o controle, o peito manda e os lábios obedecem.

Meus olhos molhados
Insanos, dezembros

Cada vez mais embargados e confusos, meus olhos correm pela pilha de fotos, e às vezes voltam ao espelho, numa esperança vã de te ver ali, comigo.

Mas quando eu me lembro
São anos dourados
Ainda te quero
Bolero, nossos versos são banais

Quero os anos de volta. Nossa música, nossa dança, nosso amor.

Mas como eu espero
Teus beijos nunca mais
Teus beijos nunca mais

Espero, com todo meu coração. Ainda espero, em vão talvez, ou não. Espero teus beijos, nunca mais? Talvez nunca mais, mas guardados estão os beijos já dados. Um beijo dado não se toma de volta, amor. Tenho guardados muitos. Muito mais do que fotografias, muito mais do que lembranças. Tenho um beijo seu, guardado, pra cada minuto que resta de minha vida.
E isso é o bastante.

Nota: A música (em itálico) chama-se 'Anos Dourados', de autoria de Chico Buarque e Tom Jobim.

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