25 de outubro de 2012

Castelão

Imagem original: http://goo.gl/heOJ4

     Olhe a cara dele. Todo desajeitado, enrolado no cobertor e segurando uma pá maior do que ele. Uma risada inocente me escapa, e ainda bem que meu filho não pode me ver com clareza dali de cima.
     — 'Tá bom aqui, papai?
     — 'Tá sim, filhão! — e estendo a mão em um sinal positivo.
     Estou caducando, será? Mascar fumo dia e noite não está fazendo nada bem para meus dentes, mas pareço não considerar isso e continuo mascando. Devo estar velho demais para me abster de certos costumes, como o de sentar nessa varanda mascando fumo e fazendo carinho nos pelos ensebados do nosso vira-lata. Ô Sombra, você precisa de um banho, hein? Qualquer hora a gente vai lá na represa e você se limpa, ou algo parecido com isso. Ele parece sorrir quando digo isso e volto a observar meu filho no topo de seu castelo.
     Isso é uma obra antiga. O celeiro era só um celeiro na época de meu pai (que Deus o tenha), e um dos maiores da região. Daria para abrigar uma província inteira nele, e comumente eu falava que ele poderia ser um reino. Bem, àquela época era o reino de alguns cavalos, galinhas e muitos sacos de milho e cubos de feno. Ah, claro, além dos litrões de leite que vendíamos para a vizinhança. Nunca me atrevi a tomar leite de caixinha: Só o cheiro já me provoca náuseas. Não sei como aquele povinho da cidade, cheio de elevadores e palavras em inglês, consegue beber aquele sebo branco... Ai, me retorce as entranhas falar disso.
     Acho que meu filho começou a discursar, não sei bem. Ele mesmo inventou sua roupinha de rei: Sua capa é o cobertor velho que o avô dele usava para dormir; sua coroa é um galho retorcido de melancia que roubou lá do Tião; seu cetro perolado é uma pá. e se diverte como só, olhe isso! Gritando aos quatro ventos todos os seus benefícios ao reino...
     Bem, voltando à obra, sempre achei que seria divertido fazer um celeiro diferente de todos da região. Essa ideia de uma casa gigante de madeira podre nunca me foi tão agradável, então pensei: Por que não um castelo? Meu pai me mandou calar a boca e ordenhar as vacas quando eu disse isso. Tive que esperar mais de trinta anos para pôr esse sonho em prática. Eu, aqui, só eu e minha mulher (que Deus a tenha, maldita seja a malária) trabalhando no que ela dizia ser "minha loucura". E eu não sabia dizer porque, mas sentia que havia serventia nessa ideia.
     Dois invernos se passaram até conseguirmos duas torres, um mezanino, alguns cômodos internos no andar de cima e até um sulco em volta, mas conseguimos. Finalmente o celeiro se transformou em um castelo, em um reino, e eu fui criança por um dia. Gostava tanto de lá que passava dias inteiros ali com minha mulher. Fizemos até um quartinho nosso! Mas ainda não havíamos decidido qual a serventia de nossa fortaleza rural. Por enquanto, só servia para continuar guardando o leite tão abundante de nossas vacas importadas do Uruguai.
     E foi quando Naldinho nasceu que o objetivo de nosso castelo tomou forma. Minha mulher infelizmente não está aqui para ver seu bebê virando homenzinho, mas com certeza está em outro lugar e será avisada desse acontecimento. E Naldinho sempre quis brincar no castelo, sempre quis ir lá e nunca deixei. Dava esse pretexto de só poder ir lá quando for homenzinho. Ele chegou a visitar os bichinhos, claro, e já sabe ordenhar e a encaixotar os ovos sem quebrar unzinho sequer (nem eu faço isso tão bem), mas ir sozinho lá? Só hoje. Porque hoje ele é rei, e se preparou por tanto tempo para esse momento que tudo que posso fazer é prestigiar daqui de baixo, mascando meu fumo.
     É ótimo quando um sonho seu se transforma no sonho de outras pessoas, também. Talvez não seja estritamente o mesmo sonho, mas um puxou o outro e, de repente, temos uma grande corrente de sonhos que nos une e dá sentido à nossa vida. Minha vida tem muito mais sentido agora que Naldinho é um homenzinho, agora que pode ir ao celeiro sem minha companhia. Porque, afinal, o sonho de meu pai era um celeirão gigante para guardar toda sua esperada carga de leite, o meu era transformar o celeirão em um castelo, e agora meu filho já está na idade de ter sonhos de uma vida inteira.
     — Gostou, pai? — ele pergunta, provavelmente sobre o discurso do qual não consegui ouvir uma frase inteira.
     Como eu poderia não gostar?

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