1 de agosto de 2012

Onde há paz

(Um crossover com Sub Jove)

Anteriormente na saga de Zara, o caçador de anjos:



“Mas vejo uma lei diferente agindo naquilo que faço, uma lei que luta contra aquela que minha mente aprova. Ela me torna prisioneiro da lei do pecado que age no meu corpo. Como sou infeliz! Quem me livrará deste corpo que me leva para a morte?” (Carta de Paulo aos Romanos, 7. 23-24)


Debaixo de Júpiter, me desespero.
Isso é a morte?, indaguei-me. Parecia algo tão irrisório diante da grandeza da vida, e eu não estava com a menor vontade de morrer de tal modo inglório: Sangrando ininterruptamente por vários cortes e furos de sabres e punhais de saqueadores em meu corpo desnudo. A areia do deserto, que outrora aconchegara minha existência, agora penetra essas feridas como grãos de fogo, fazendo-me chorar infantilmente de dor.

Debaixo de Júpiter, eu agonizo.
Não me levaram nada importante, só o meu insignificante dinheiro que eu usava no máximo para trocar por alimento para meu camelo. Ele, por sinal, está caído na mesma areia picante que eu, já sem vida e com larvas e lagartos se alimentando de suas entranhas. Minha roupa, retalhada e formando um leito de morte à minha volta, estava cheirando a morte. À minha morte, tão próxima e tão insignificante.

Debaixo de Júpiter, eu fecho os olhos.
Não há muito para ver no mundo externo quando se está morrendo. O que importa é ver sua própria linha do tempo trespassando suas veias e artérias entupidas de ódio e ressentimento que não foi expelido a tempo. Do mesmo modo que um rançoso muco que se desprende dificilmente de nossa garganta, muitas desculpas que deveríamos ter pedido ficam lá na hora da morte, fechando nossa glote e nos impedindo de continuar a respirar. A hora da morte é a hora da reflexão. Às vezes a vida não nos dá tempo o bastante para nos livrarmos de nossos arrependimentos.

Debaixo de Júpiter, eu sangro.
Músculos fracos e cabeça zonza são tudo que me resta. A luz incandescente do deus Sol embebe minha dor, fazendo a ardência ser demasiadamente venenosa e bestial. Todo meu conhecimento, toda minha bênção... tudo não valia mais a pena. Nenhuma pessoa sequer sentiu o gosto de ter os poderes divinos que me eram inerentes. Um conhecimento perdido, uma bênção renegada. Nunca fui digno do que recebi dos céus.

Debaixo de Júpiter, havia uma pessoa.
Um anjo, que se ajoelhou do meu lado e me reconheceu. Viu todos os pesares que causei e todos os que me foram causados. Minha barba malfeita e unhas desproporcionais denunciavam que eu já não tinha o menor apego com vaidade. Toda a força que eu tinha, a força que os céus me deram quando nasci anjo, foi desperdiçada por mim quando desci à Terra e vi a total desesperança nas atitudes dos homens. Pequei junto a milhares, milhões – bilhões, até. Tornei-me tão igual a todos os pecadores que já não sabia mais como voltar para o Reino dos Céus. Assim, trilhei meu caminho de iluminação esperando que só eu fosse iluminado. Ledo engano, o meu: Um ser iluminado que não ilumina tem o mesmo valor de uma sombra. Vejo assim.

Debaixo de Júpiter, eu peço.
Encarecidamente, estendo meu diário ao anjo. “Queime-o”, peço quase sem voz. A memória daquele dia deveria ser entregue a Deus, como eu o seria. E assim o anjo fez, logo após pegando sua reluzente adaga de sua cintura e rasgando meu pescoço, levando-me ao além, ao além-mar, além-terra, além-mundo. De volta a Deus.”


A parte boa disso, no final, foi não precisar fazer muita coisa para executá-lo. Coitado do Pagiel, tão jovem e tão corrompido pelo planeta Terra... Não aguentou a pressão, fazer o quê.
Retirei o suor petulante da minha testa (agora feminina e de traços árabes, com direito a narigão e sobrancelha grossa, uma lindeza) e vi as últimas plumas do tal nômade sumirem em fachos de luz. Fiquei sabendo que vira ao planeta com a aparência de um homem-feito de trinta anos, mas ficou bestificado com toda a parte ruim da natureza humana, assim ensandecendo e se isolando aqui no Saara (Olha, até parece Zara. E se aqui na Terra eu chamasse Zaara?). Ele foi mais um para o qual minha visita provavelmente havia sido uma segunda chance, e não um castigo.
Fiz uma almofada com as roupas de Pagiel e me sentei, pegando o cantil de metal que comprei em uma feira de Cairo e me esbaldando com a água terrosa que havia lá dentro. Por um momento me lembrei de todos os drinques que tomei em São Paulo no dia em que fui executar Esmirna e quase cuspi o líquido no chão, tamanha era a impureza daquela água. Mas, bem, era o que eu tinha para aquele dia. Melhor do que morrer pelado no deserto, pelo menos.
Naquela imensidão que era olhar à minha volta no deserto, só consegui pensar o quão bom era, depois de perambular por várias metrópoles, ouvir o som do vazio. Não ter um barulho ambiente entrando, violando meus ouvidos. Acho que essa violação sonora deve explicar muito do “estresse da cidade grande” (Expressão legal, né? Aqui na Terra usam bastante em noticiários e coisa e tal).
Aqui, debaixo de Júpiter, há paz. E aposto que Pagiel nem notou isso.
Vejo assim.
Era assim que ele falava, não era?


Nenhum comentário: