(Um crossover com Sub Jove)
Anteriormente na saga de Zara, o caçador de anjos:
“Mas vejo uma
lei diferente agindo naquilo que faço, uma lei que luta contra aquela que minha
mente aprova. Ela me torna prisioneiro da lei do pecado que age no meu corpo.
Como sou infeliz! Quem me livrará deste corpo que me leva para a morte?” (Carta
de Paulo aos Romanos, 7. 23-24)
†
“Debaixo de Júpiter, me
desespero.
Isso é a
morte?, indaguei-me. Parecia algo tão
irrisório diante da grandeza da vida, e eu não estava com a menor vontade de
morrer de tal modo inglório: Sangrando ininterruptamente por vários cortes e
furos de sabres e punhais de saqueadores em meu corpo desnudo. A areia do
deserto, que outrora aconchegara minha existência, agora penetra essas feridas
como grãos de fogo, fazendo-me chorar infantilmente de dor.
Debaixo de
Júpiter, eu agonizo.
Não me
levaram nada importante, só o meu insignificante dinheiro que eu usava no
máximo para trocar por alimento para meu camelo. Ele, por sinal, está caído na
mesma areia picante que eu, já sem vida e com larvas e lagartos se alimentando
de suas entranhas. Minha roupa, retalhada e formando um leito de morte à minha
volta, estava cheirando a morte. À minha morte, tão próxima e tão
insignificante.
Debaixo de
Júpiter, eu fecho os olhos.
Não há muito
para ver no mundo externo quando se está morrendo. O que importa é ver sua
própria linha do tempo trespassando suas veias e artérias entupidas de ódio e
ressentimento que não foi expelido a tempo. Do mesmo modo que um rançoso muco
que se desprende dificilmente de nossa garganta, muitas desculpas que
deveríamos ter pedido ficam lá na hora da morte, fechando nossa glote e nos
impedindo de continuar a respirar. A hora da morte é a hora da reflexão. Às
vezes a vida não nos dá tempo o bastante para nos livrarmos de nossos
arrependimentos.
Debaixo de
Júpiter, eu sangro.
Músculos
fracos e cabeça zonza são tudo que me resta. A luz incandescente do deus Sol
embebe minha dor, fazendo a ardência ser demasiadamente venenosa e bestial.
Todo meu conhecimento, toda minha bênção... tudo não valia mais a pena. Nenhuma
pessoa sequer sentiu o gosto de ter os poderes divinos que me eram inerentes.
Um conhecimento perdido, uma bênção renegada. Nunca fui digno do que recebi dos
céus.
Debaixo de
Júpiter, havia uma pessoa.
Um anjo, que
se ajoelhou do meu lado e me reconheceu. Viu todos os pesares que causei e
todos os que me foram causados. Minha barba malfeita e unhas desproporcionais
denunciavam que eu já não tinha o menor apego com vaidade. Toda a força que eu
tinha, a força que os céus me deram quando nasci anjo, foi desperdiçada por mim
quando desci à Terra e vi a total desesperança nas atitudes dos homens. Pequei
junto a milhares, milhões – bilhões, até. Tornei-me tão igual a todos os
pecadores que já não sabia mais como voltar para o Reino dos Céus. Assim,
trilhei meu caminho de iluminação esperando que só eu fosse iluminado. Ledo
engano, o meu: Um ser iluminado que não ilumina tem o mesmo valor de uma
sombra. Vejo assim.
Debaixo de
Júpiter, eu peço.
Encarecidamente,
estendo meu diário ao anjo. “Queime-o”, peço quase sem voz. A memória daquele
dia deveria ser entregue a Deus, como eu o seria. E assim o anjo fez, logo após
pegando sua reluzente adaga de sua cintura e rasgando meu pescoço, levando-me
ao além, ao além-mar, além-terra, além-mundo. De volta a Deus.”
†
A parte boa
disso, no final, foi não precisar fazer muita coisa para executá-lo. Coitado do
Pagiel, tão jovem e tão corrompido pelo planeta Terra... Não aguentou a
pressão, fazer o quê.
Retirei o
suor petulante da minha testa (agora feminina e de traços árabes, com direito a
narigão e sobrancelha grossa, uma lindeza) e vi as últimas plumas do tal nômade
sumirem em fachos de luz. Fiquei sabendo que vira ao planeta com a aparência de
um homem-feito de trinta anos, mas ficou bestificado com toda a parte ruim da
natureza humana, assim ensandecendo e se isolando aqui no Saara (Olha, até
parece Zara. E se aqui na Terra eu chamasse Zaara?). Ele foi mais um para o
qual minha visita provavelmente havia sido uma segunda chance, e não um
castigo.
Fiz uma
almofada com as roupas de Pagiel e me sentei, pegando o cantil de metal que
comprei em uma feira de Cairo e me esbaldando com a água terrosa que havia lá
dentro. Por um momento me lembrei de todos os drinques que tomei em São Paulo
no dia em que fui executar Esmirna e quase cuspi o líquido no chão, tamanha era
a impureza daquela água. Mas, bem, era o que eu tinha para aquele dia. Melhor
do que morrer pelado no deserto, pelo menos.
Naquela
imensidão que era olhar à minha volta no deserto, só consegui pensar o quão bom
era, depois de perambular por várias metrópoles, ouvir o som do vazio. Não ter
um barulho ambiente entrando, violando meus ouvidos. Acho que essa violação
sonora deve explicar muito do “estresse da cidade grande” (Expressão legal, né?
Aqui na Terra usam bastante em noticiários e coisa e tal).
Aqui, debaixo
de Júpiter, há paz. E aposto que Pagiel nem notou isso.
Vejo assim.
Era assim que
ele falava, não era?
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