25 de agosto de 2012

Pináculo

     Uma sombra se ergue entre as paredes. Dúvida: Era a minha? A sua? A morte não me parece mais algo tão bom. Se você quer voltar de onde foi, então não. Coitado de mim, que queria tanto morrer. Você não quer que eu morra, certo? É o que imagino. A sombra dança no teto, tremeluzente como a chama de uma vela sacudida pelo vento indócil. É você falando comigo, eu já sei. Pode se acalmar, estou te entendendo. Eu te entendo. Alguém te entende, fique feliz. A sombra escreve na parede com seus dedos grandes e rígidos como batutas. Não consigo ler: Tudo treme. Nada fica em seu devido lugar.
     Saia da minha casa!, ordeno. Não tenho mais nada a tratar com você. Pare de escrever na parede de minha casa, minha casa. Você não tem permissão. Luzes me cegam. Caio no chão, ouço um osso meu se partir mas não sinto dor. Dor é primário demais para você, não é? A dor não é nada se comparada à agonia, ao arrependimento. É isso que você quer escrever. Descobri. Agora apague isso tudo e vá embora. Não posso mais te ajudar. Não, não. Fiz tanto por você e é assim que me agradece, com um dedo quebrado — um dedo, acabo de ver. Sombra ingrata.
     Quer a verdade, não é? Você sempre foi uma sombra. Nunca esteve ao meu lado, só atrás de mim. Embaixo de mim. Minúscula, microscópica, sem o menor valor. Você já teve algum valor antes da morte? Acho que não. Agora quer ter, te entendo. Já disse que te entendo, merda! É tão difícil entender que te entendo? Pode ser tarde demais, mas a compreensão veio e você deveria ficar feliz com isso. Não? Vá ser infeliz longe daqui, pois perto você me deixa mais infeliz ainda. Te entreguei às mãos da morte para que fosse feliz, pois comigo você nunca significou algo. Nem essas criaturas gosmentas que saíram de dentro de você significam. Não estão mais comigo. Pensou mesmo que eu cuidaria deles? Achou que eu queria alguma memória sua? Alguma memória minha? Estamos no mesmo barco, no barco de Caronte. Enterrei seu corpo em terra abandonada e coloquei moedas sobre seus olhos. E você foi. Ah, como foi doce sua partida. A única memória boa que tenho. Foi o melhor que pude fazer nessa existência medíocre que sempre levei. Você só piorou tudo: Me livrar de você foi o pináculo de minha vida.
     O que você escreveu, hã? Não me derrube de novo, não! Não me ataque, não faça isso. Não quebre mais ossos meus. Estou só. Não consigo mais levantar. Sua vadia! Vá embora! Deixe-me ler. Quem nesse universo escreve para que ninguém leia? Ridículo de sua parte. Não consigo mais me mexer. Sem forças. Vadia. Nem te ofender consigo mais. Te ofendi o bastante possuindo seu corpo, não? Ah, não quer que eu te lembre disso, vadia? Adoro te chamar de vadia, sempre adorei. Você odeia, não é? Adoro você irada com isso. Vadia. Pode me quebrar inteiro. Se me matar, sabe que vou até aí te atormentar pela eternidade. É o que quer? Desgraçada, já nem mexo mais meu pescoço. E você está na frente dos escritos. Deixe-me ler! Ainda tenho olhos. Quer arrancá-los, não é? Vá em frente. Ah, desistiu? Tudo bem. Em que você está pensando? Ah, no véu, no bolo, na festa. Dinheiro queimado, jogado fora, se quer saber. Nos nossos olhos se entrelaçando. Idiotice. Éramos jovens e não sabíamos o quão ridículos éramos. Odeio você. Sempre odiei. Pare de gritar! Sim, sempre! Vá se foder, foi sempre, sim. Otária. Vadia. Pare com isso, já estou sangrando! Justo, você sangrou muito mais quando te entreguei a Caronte. Então mande ver, acabe comigo.
     Agora está parada. Não quer mais conversa, vadia? Já estou aqui, retorcido como um pano nesse chão, deitado em meu sangue. O que mais você quer de mim? Estou só. Estou pobre. Não posso te dar mais nada. Nem o prazer da dor. Mas e o da agonia? Que agonia? Sem dor, não há agonia. Estou enganado? O que você quer dizer com isso? Não, não vá embora sem me explicar isso! Volte! Venha cá! E... o que você escreveu? Ah, não. Isso não. Não posso me mexer. Não posso sair daqui. Meu corpo não me responde, alguém me tire daqui! Socorro! Socorro! Por favor!
     "Hoje — e para sempre — é seu aniversário, querido."
     Não!
     "Achou que eu fosse esquecer dessa data tão especial?"
     Socorro!
     "O meu presente é o programa que você mais gosta de assistir: A morte."
     Por favor!
     "Assista a sua morte enquanto me acostumo com a minha."
     Tarde... demais.

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