21 de agosto de 2012

Velas e Hard Rock

     Ela sempre me dizia que velas eram românticas. A meia-luz proporcionada por elas deixava tudo muito mais interessante entre um casal, era o que ela martelava em minha cabeça. E, finalmente, quando consegui entrar na casa dela em uma noite dessas, me debulhei para fazer a melhor noite de amor para ela. Mas isso foi há tanto tempo que às vezes imagino se foi só uma história que imaginei um dia desses, ou mesmo um sonho que perdura no meu inconsciente.
     Um insight de uma história de amor de verdade.
     Digo isso por causa da mulher deitada no sofá, logo ao meu lado, mas que não toca em mim. Um ano atrás, essa mulher acreditava em príncipes encantados e até na possibilidade de ter filhos. Ela acreditava nas coisas, acreditava no mundo, acreditava em si mesma. Hoje, dormindo com um rosto contraído pela raiva que sempre está presente em suas feições, minha Bela Adormecida parece mais uma Loba Má, no pior sentido da expressão.
     “Nossa, vovó, por que essa cara tão feia?
     “É para você não me comer mais, Chapeuzinho.”
     Que indelicado.
     Agi rapidamente enquanto ela tomava banho naquela noite: Deixei só a cortina translúcida por cima da janela aberta para que o luar também pudesse participar de nossa primeira noite juntos. As velas, o charme do nosso mundo de noite: Fui eu que as trouxe de casa. Velas aromatizadas de várias cores pelo quarto de paredes amarelas, deixando-o em um tom cáqui tão acolhedor que por um momento pensei só em deitar ao lado dela na cama e ficar olhando para seus grandes olhos cor-de-avelã. Desabotoei a camisa em cima para que eu não me sentisse sufocado pelas minhas próprias preocupações sobre a relação que estávamos construindo, ou a relação que teríamos naquela cama, ou a relação entre o vento gelado da noite e as velas acesas do quarto. Mudei de ideia: Janelas fechadas. Devem haver outros casais para você espiar, dona Lua.
     As duas avelãs dela estão fechadas hoje. Para mim, elas não têm mais brilho do que uma uva passa. As velas que hoje estão acesas são só para podermos andar pelo apartamento: Esqueci da conta de luz. A janela aberta só bafora um ar quente para dentro de nosso cubículo onde pensei que construiríamos uma vida juntos. Faz um ano, mas parece que faz tanto tempo, mas tanto tempo...
     Ela sentou de roupão do meu lado, ainda com o corpo úmido, e começamos a nos beijar. Pelo menos eu não teria que me preocupar com coisas como “o fecho do sutiã é na frente ou atrás?” ou “por que a calça dela tem que ter dois botões?”. Não falamos uma palavra naquele momento, não nos era conveniente. Mas, depois dela estar com o roupão aberto e os cabelos dispostos como as serpentes de Medusa pelo colchão dela, lembrei que havia mais uma surpresa para a ambientação de nossa noite: Hard rock. Ela adorava, passava noites ouvindo Mötley Crüe, Skid Row, Cinderella e o que mais o mundo pudesse oferecer com cabelos cheios de laquê e músicas sobre mulheres, bebida, mulheres, cadeia e mais mulheres. Coloquei o CD no aparelho de som e uma parte do orgasmo dela estava garantida: A outra ainda era comigo.
     Ela nem ouve mais hard rock; não ouve mais nada. Perdeu os sentidos, está sempre entorpecida em sua névoa de arrependimento. Nos amamos feito um casal de contos de fada, mas no momento presente não passamos de meros inimigos na mesma casa, intocáveis. Sexo com amor nem existe mais, mas provavelmente no sexo é onde mais nos amamos. Pelo menos esse prazer nós tínhamos que proporcionar um ao outro. Deve ser por isso que ainda estamos juntos.
     Ela já estava sobre mim, sem o roupão e desabotoando o resto da minha camisa. Desinibida como nunca antes, olhava volta e meia para as velas: Como ela havia gostado delas! Em um passe de mágica, um ambiente decorado do jeitinho dela transformou-a em uma mulher sedenta por se satisfazer, por se encher de amor. Não é muito uma coisa que se vê na cama, mas por algum motivo não pude deixar de notar que ela estava alegre. Alegre como um cachorro quando o dono chega em casa; alegre como se a banda preferida dela tivesse entrado no palco. Ela fazia questão de se divertir aquela noite.
     Talvez fôssemos bons amantes, mas não éramos bons cônjuges. Se não estivéssemos cegos pelas noites de sexo, eu aceitaria me casar com uma boa esposa e traí-la com ela, minha amante número um. Um bom enredo de música de hard rock para a vida dela, aliás: Por que não pensamos nisso antes? Seria tão melhor, só nos aguentaríamos durante aquelas noites cheias de gritos e gemidos. Aguentar seus gritinhos durante as transas seria muito melhor do que aguentar seus berros durante nossas discussões.

     Ela acordou, finalmente. Ainda com os olhos cerrados, sentou no sofá e me perguntou rispidamente por que eu ainda não a havia levado para a cama. Respondi que, se ela quisesse ir para a cama, que fosse por ela mesma. Ela bufou e se dirigiu ao quarto batendo os pés, mas estacou por um momento. Encarou as velas (brancas, insípidas, só serviam para fornecer uma luz tão fraca e mirrada...), a meia-luz de nossa sala e voltou os olhos para mim. Por um momento – um momento só – consegui ver a mesma mulher do ano passado.
     Aquela mulher, de cabelos tão negros e esvoaçantes que depois de uma transa estavam todos entrelaçados; de corpo tão miúdo que se contorcia violentamente em meio a um orgasmo; de mãos que adoravam se eclipsar em meus cabelos e agarrá-los com toda a força que tinham durante o sexo. Minhas melhores memórias dela, inevitavelmente, residem entre quatro paredes. Só que já não valia mais a pena tentar acender de novo o pavio do amor só para que continuemos tendo noites como as que temos. E ela sabia disso, também.
     Ela resmungou um boa-noite curto e foi para a cama. Bocejei e em pouco tempo estava quase dormindo no sofá. Levantei-me e comecei a apagar as velas como uma pessoa que elimina as esperanças, uma a uma. Assopro para a inexistência a esperança de uma relação saudável com minha esposa; termino de vez com a vontade de dormir abraçado com ela só mais uma vez; apago com os dedos úmidos o desejo de tê-la como mais do que uma transa domesticada. Quando faltava só uma vela para apagar, pensei de súbito em como a esperança já havia mudado as dimensões do nosso mundo, e me perguntei: Por que não do meu mundo? Levei a vela com todo o cuidado para o nosso quarto. Deixei-a ao meu lado, no criado-mudo, resplandecente como os olhos de minha mulher - quando ainda brilhavam. E assim dormi, esperando que um milagre acontecesse, ainda acreditando em milagres.
     Ainda acreditando nas coisas, no mundo, em mim mesmo. E nela, claro.
     Na esperança, não em minha mulher.

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