19 de agosto de 2012

A noite escura e mais todos nós


Livro: "A noite escura e mais eu", de Lygia Fagundes Telles. Publicado inicialmente em 1995 pela editora Nova Fronteira e relançado pela Companhia das Letras em 2009.

     O ser humano é a matéria-prima de um escritor. É bem difícil um livro onde não há exploração da mente e comportamento humanos, mesmo que refletidos em casas, animais ou objetos inanimados. Em A noite escura e mais eu, publicação de 1995 de Lygia Fagundes Telles (estou aprendendo a amá-la, por sinal), a psique de nossa espécie de polegar opositor é revelada em seu cerne, tanto em pessoas quanto em um cachorro e até mesmo em um anão de jardim. O incrível é perceber como a simples observação de um fato por um ser feito de pedra pode revelar muito sobre seres humanos - incluindo-nos nisso.
     Seguindo a linha de leituras nada tranquilas, Lygia escreve de um modo muito peculiar, pouco fácil para quem não tem muito tato para a leitura: Indagações, respostas, primeira e terceira pessoas se mesclam em um único parágrafo de modo assustador à primeira vista. Junto a isso, a escritora também tem o costume de não fazer finais tão concisos e impactantes, deixando certa lacuna pouco previsível para o leitor preencher. No entanto, tudo isso é por um bem comum: Mostrar a história pelo ponto de vista mais humano possível, com todas as confusões mentais no cerne de questões intrincadíssimas pelos nove curtos contos do livro (curtos, mas cinco vezes maiores do que os contos daqui do Mínima Ideia). As histórias nessa noite escura com Lygia Fagundes Telles incluem um assassinato em doses homeopáticas presenciado pelo anão de jardim citado acima ("Anão de jardim"), um triângulo amoroso que mais se assemelha com um pentagrama ("Você não acha que esfriou?"), uma mãe revivendo e analisando sua relação com a filha suicida à beira de seu túmulo ("Uma branca sombra pálida") e muito mais situações em que o choque de realidade é simplesmente implacável.
     É notável que a escritora - que, para quem não sabe, é macaca velha da literatura brasileira: Está na praça desde os anos 30 e ganhou em 2005 o Prêmio Camões por toda sua obra - tem sentidos aguçadíssimos para tudo que se diz humano. Eu, pessoalmente, preferi (talvez por puro amadorismo, talvez por costume) os contos em que o fim é claro e esmagador, como "Você não acha que esfriou?" e "Uma branca sombra pálida". Eles mostram como, por mais que as amarras estejam apertadas demais na situação, sempre há espaço para mais um nó. Ainda assim, personagens como a espevitada Dolly no conto que leva seu nome, o cachorro que se transforma em homem de "O crachá nos dentes" e até mesmo a senil professora tirana de "Papoulas em feltro negro" são tão tangíveis que é difícil não haver a mesma identificação com eles. Uma identificação, por sinal, nada boa: Dissimulados, infelizes, traumatizados, os personagens nesse livro tornam-se tão humanos quanto nós. Meu caráter foi severamente sequelado pela maldade gratuita e pela bondade esclerosada que permeia muitos dos textos.
     A noite escura e mais eu é um livro de contos coeso como poucos. Acabamos ficando tão integrados ao organizado novelo da obra que notamos, lá no fim, que o eu do título não se trata da escritora, e sim, de nós mesmos. Trata-se da noite escura que nos acompanha a cada dia e se manifesta vez ou outra, gerando o caos que a vida de todos nós é.

Outras informações: O título do livro veio do poema "Assovio", de Cecília Meirelles:

"Ninguém abra a sua porta
para ver que aconteceu:
saímos de braço dado,
a noite escura mais eu.

Ela não sabe o meu rumo,
eu não lhe pergunto o seu:
não posso perder mais nada,
se o que houve já se perdeu.

Vou pelo braço da noite,
levando tudo que é meu:
- a dor que os homens me deram,
e a canção que Deus me deu."

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