10 de agosto de 2012

Vaivém

     Existem coisas que simplesmente não consigo aprender: Por exemplo, esses sapatos de salto alto sempre, sempre mesmo, machucam meu calcanhar. A questão estética fala mais alto, mesmo assim.
     “Só que você sem maquiagem já não fica mais tão parecida comigo”, disse a garotinha no balanço ao meu lado. Ela ia e voltava, voltava e ia como se não fizesse parte do tempo.
     Ela tinha razão: Eu já não tinha muita graciosidade sem maquiagem. As marcas de espinha eram quase uma razão de vergonha, e meus lábios haviam murchado e se tornado duas lâminas de carne sem muita vida. A garotinha continuava exuberante, com lábios corados e saudáveis e pele invejavelmente lisa. E ia. E voltava.
     “Não ando ligando muito para meu rosto por trás disso tudo”, retruquei.
     “Pois devia. Você está criando uma dupla personalidade com essa atitude”, a menina disse e quase a esbofeteei. Ela está achando que é minha psicóloga? “Enfim, a vida é sua agora, e não mais minha. Como vai o Bira? Desde a última vez que nos falamos que não sei dele...”
     “Terminamos.”
     “Mas por quê? Você gostava tanto dele... E eu também, vou confessar. Era engraçado ele ter aquele nome de índio e ser branco que nem nós duas.”
     Ah, o Ubirajara. Casou, será? Dizem que achou o amor da vida dele na faculdade que começou a cursar esse ano. Medicina? Ele queria tanto, não sei se conseguiu. Talvez sejam só más línguas tentando me fazer sentir o gosto estragado do arrependimento. Pouco me importava, mesmo assim. Ele nunca mais me procurou, deve estar feliz. E eu estou feliz também.
     “É mesmo? Já está com outro, não é?”
     Sim, respondi. Sandro, baixinho de vinte e dois anos, um projeto de gente tão respeitoso e divertido que me encanta só de pensar nele.
     “Ele deve se sentir intimidado pela sua altura”, a menininha comentou, flexionando as pernas para o atrito com o ar no balanço ser menor enquanto ia de costas pelo ar gelado de Agosto.
     “E se sente, mas não é nada de mais. Temos muitos planos e ideias para ficarmos pensando na altura um do outro. Já estamos morando juntos, falando nisso”, lembrei de súbito.
     “Sério? Que coisa linda”, a garotinha disse com certo desinteresse. “Desejo tudo de bom para os dois. Ele não tem uma vida tão estranha quanto a nossa, né?”
     “Às vezes acho que a vida dele é muito pior, na verdade. Nada que eu... que nós não possamos aguentar”, respondi arrumando o bandeide que descolava do calcanhar. Minha roupa social estava tão desgrenhada que parecia que eu havia feito o Caminho de Santiago de Compostela vestindo essa saia e esse blazer.
     Meus olhos verdes avistaram a menininha. Ela compartilhava meus olhos verdes, meus cabelos loiros, meu nariz arrebitado e meu sorriso largo e radiante. Ela só não compartilhava das mesmas memórias que eu, e essa era sua virtude maior: Ir e voltar, voltar e ir sem problema algum. A vida dela era inconsequentemente tranquila sem trabalho ou faculdade ou relações amorosas ou relações sexuais. Era uma virtude não ter a mesma carga mnésica que eu e, ao mesmo tempo, saber tanto sobre mim.
     “Você nem falou mais com o Bernardo, né?”, ela disse com um ar de superioridade no ponto mais alto do balanço, e depois no mais baixo.
     “Já te falei que não, e nem quero. Nosso pai me encheu tanto a cabeça de minhoca sobre ele... ‘ah, ele é do tipo que não evolui’, ‘ah, ele é tão infantil’, ‘ah, o cabelo dele é tão duro’... Hoje em dia eu quase tenho repulsa por ele”, respondi sem oscilar no meu banco de balanço. As correntes estavam frágeis e enferrujadas, eu não poderia arriscar.
     “Coitado... você o amou bastante.”
     “Amei. E parece que não valeu a pena, ele continua a mesmíssima coisa desde o dia em que terminamos.”
     Memórias palpitavam na minha boca como aquelas balas azedinhas que explodem no contato com a saliva. O desconforto me encolhia naquele banco de madeira de modo a me ver minúscula perto da garotinha atemporal. Segurei um choro convulsivo e desesperado que simplesmente tive vontade de expelir, engoli-o fundo e me controlei. Eu precisava ser forte para a menininha; precisava ser forte para mim mesma.
     “Trabalhando?”
     “Dando minhas aulas, né. Cada vez mais tem criança que está aprendendo a digitar ao invés de escrever e lá vou eu ensinar a elas.”
     “Você está bem?”
     Odeio quando me perguntam isso. Sério, odeio com todas as minhas forças. Mordi determinada o meu lábio murcho e cerrei os olhos com força.
     “Se eu estivesse bem, você acha que eu viria falar com você?” Ah, você, meu porto seguro, meu oásis nesse deserto sem fim onde vadio. Minha vida perderia o sentido sem essa infância velada que acesso como um arquivo oculto de minhas aulas de informática. Será que ela não conseguia entender isso?
     “Não gosto que você venha falar comigo só porque não estamos bem”, ela rosnou fechando a cara daquele jeito cute-cute que eu fazia quando eu era ela.
     “Da próxima vez eu venho em circunstâncias melhores... eu só não tou bem, e não sei por quê.”
     “Quer que eu saiba, por acaso?”, ela disse sem vacilar em seu vaivém no balanço. “O meu papel no seu mundo já está feito, e é seu passado. Se você tem que falar com alguém, é com o seu ‘eu’ do presente. Não sei mais sobre você, não sei até onde você consegue dividir os amores dos apegos dos desejos carnais. Nem você sabe o seu problema, como quer que eu – que existi há quase quinze anos em você – saiba?”
     Foi quando olhei para o balanço e ele estava vazio. Ele ainda balançava sacolejante por não existir controle nem peso sobre ele. Ele, também, ia e voltava do mesmo jeito que meus pensamentos resolveram fazer. Apertando meus já doloridos lábios, deixei que uma lágrima rebelde escapasse e corresse por todo o meu rosto já não tão sedoso, minha boca já não tão atraente, meu pescoço já não tão beijado, meu busto já não tão desejado e sumir no esquecimento das minhas roupas sem valor. Ah, a treva – nem sabia que eu estava nela desse modo. Mesmo com um amor que sei que pode ser eterno ao meu lado, tive outros amores eternos até onde duraram. Essa eternidade, essa atemporalidade absurda do amor me rasga, me retalha e me joga desgostosa no chão árido do playground.
     Muita calma, ainda estou sentada no balanço. Com os joelhos encostados e os pés não, como as pernas de um compasso, apoio minha cabeça nas mãos (o esmalte já deve estar acabado de tantas roídas) e me acalmo. Organizo os pensamentos em arquivos, pastas e subpastas no meu disco rígido. Comprimo todos esses pensamentos em um arquivo só e o oculto. Sei que uma hora ou outra ele pode aparecer sem que eu nem tenha conhecimento disso e fique mal sem motivo algum, mas excluí-lo é uma tarefa muito mais difícil. Prefiro correr o risco.
     Não lembro onde estava antes da garotinha. De onde vim, aonde eu planejava ir. Sentia-me tão parada no tempo quanto ela, talvez porque eu fosse ela – o que não vinha ao caso. E ali eu notei que, fazendo um esforço para me balançar no banco, havia me esquecido de como era brincar de balanço.
     Talvez eu não precisasse aprender coisas.
     Talvez eu só precisasse me lembrar delas.

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