13 de agosto de 2012

Brincadeira de criança


I - O nascimento


No centro existia uma igreja, ao redor foram crescendo as casas, as feiras aconteciam em torno da igreja aos domingos, a população era feliz. Essa rotina durou dois séculos, até que nos montes que cercavam o município foram encontrados diamantes e minas de ouro, então o desenvolvimento aconteceu: a avenida principal ganhou destaque, virando sede de importantes negócios e logo o céu começou a ser riscado por todos aqueles blocos empilhados. A igreja foi conservada nos modelos góticos e ampliada,  tornando-se mais uma das obras faraônicas daquela cidade. Tudo era grande e seus habitantes aos poucos se tornaram gigantes, em todos aspectos, escravos da tecnologia, vivendo toda e qualquer vida menos a deles. E a cidade? Crescia de norte a sul e leste a oeste. Entretanto, enganou-se quem achou que este ser crescia só por extensão, comendo quilômetros conurbados de outras localidades. Nas entranhas daquela cidade existia um monstro chamado Urbano, ele era o espírito que viva em cada átomo da megalópole. 

Ele era a própria cidade, e estava cansado.

Urbano foi por muito tempo testemunha ocular de todos os crimes hediondos, como os assassinatos diários causados por todo tipo de psicopata. Ele estava lá vendo crianças morrendo no colo de suas mães sem ter o que comer nos faróis e em outros para ver crianças escravizadas pelos pais. Ele ouvia pelas rachaduras das casas o grito desesperado das mulheres que eram espancadas pelos seus maridos.Todos os problemas sociais ao longo dos anos ferviam-lhe a consciência deixando Urbano uma cidade sem fé, sem fé na ideia de não interferir no destino das pessoas.


II - O Rei

Tomado pelo ódio e pela vingança, Urbano vislumbrava um futuro melhor longe das pessoas. Como um adolescente imediatista e imaturo, o espírito tremia sua estrutura gigantesca, como era possível um pequeno tremor? As pessoas nas ruas se indagavam, pois tal cidade era situada em um país que se encontrava no meio de uma placa tectônica, o que dificultava o aparecimento de tremores. Depois de três tremidas, a população voltava para sua rotina, o ódio abafado no asfalto de Urbano chegou no limite, um grito gutural engoliu todo barulho daquele inferno, "Saiam da minha cidade!", repetido várias vezes o mesmo berro trouxe para fora das casas os religiosos abraçados com os falsos moralistas que profetizaram sobre o fim dos tempos. Os tremores e o barulho ensurdecedor não paravam e Urbano gritava todos os podres de todos os habitantes gerando o caos, mas o que os convenceu a ir embora foi a pane elétrica deixando todos no escuro. A massa sem ter o que fazer se locomovia com carros e outros transportes públicos que a levava para outras cidades, Urbano corria como uma esteira o asfalto das ruas facilitando a retirada dos humanos pelas rodovias. 

Uns dez helicópteros se juntaram no céu. Do maior deles, um homem de terno e gravata mais conhecido como Governador pegou um megafone e profetizou: Isto vai te custar caro! 

A promessa não assustou o revoltoso, que com orgulho assistiu aos helicópteros baterem em retirada. E Urbano comemorou a vitória, enfim tinha paz, ruas silenciosas e serenas. Sem luzes acesas, aquela noite foi a mais bela de todos os tempos da tal cidade. Urano presenteou Urbano, seu filho bastardo, com um céu estrelado.

E nos meses seguintes existia algo novo naquela cidade, existia ordem e paz. Comandadas pelo novo rei Urbano. 

III - Bloco por Bloco

Bloco por bloco, destruam este monstro, esta era a ordem expressa dada pelo Governador. O exército interviu com todo tipo de força, num domingo o céu foi tomado por caças e jatos que bombardearam sem nenhum constrangimento a cidade que um dia os abrigou. Urbano não sabia o que fazer, já estava anestesiado depois do primeiro golpe, a realidade se transformava em vidro retorcido debaixo de poeiras cinzas sob o céu vermelho. Depois dos ataques aéreos, as tropas de infantaria invadiram atirando e jogando bombas em toda estrutura que estivesse de pé. 

No centro existia uma igreja e lá estava o coração do rei Urbano, e os homens pintados de verde sabiam disso, de alguma forma. Metralharam sem dó o edifício, não explodiram de uma vez apenas para o monstro sentir a dor de ter o peito perfurado pelos projéteis, agora o rei revoltoso entendia a sensação dos muitos que sangraram em seu asfalto. Doía e por ali definhava Urbano, o rei mais justo que uma cidade pode...

 IV

Voltando para sua realidade, Jeremy observava os blocos coloridos todos caídos do que foi Urbano, um soldado no centro balançava uma bandeira com as cores vermelha, branca e azul, bem definidas em tiras. A mãe do garotou gritou seu nome duas ou mais vezes, antes dele terminar a saga da cidade, que em tese não era tão diferente da Cidade Rex. Jeremy olhou pela janela e viu uma senhora ser assaltada e logo depois morta, o homem correu com a pistola não espantando o garoto, que fitou o sobrado da frente, no qual existia uma igreja na garagem e seu som era realmente ensurdecedor, muito barulho para pouca fé, pensava o moleque. Ele estranhou por sua mãe não o ter chamado para o jantar, mas lembrou que às 19:30 seu padrasto voltava bêbado do "trabalho" e esperava sua mãe para o espancamento diário, já era 20:40 então o silêncio que reinava já dizia tudo, a surra foi enquanto ele imaginava a história de Urbano. O garoto bocejou,  levantou e arrumou a bagunça de brinquedos no chão, fechou a porta do quarto e apagou a luz, pois tinha esperança que pelo menos os monstros imaginários  tivessem medo do escuro.

E foi dormir na esperança de pelo menos algumas horas não mais ver, ouvir e sentir. Dor.

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Resolvi postar alguns contos perdidos em um certo baú,
A Cidade Rex não para, nada pode deter esse antro de loucos bem disfarçados, assim como a página do Mínima Ideia no facebook:

http://www.facebook.com/minimaideia

Por favor, galera que leu até aqui é muito importante aquele curtir de sempre na página.

Muito obrigado.
Abraços do marceneiro.

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