4 de agosto de 2012

Apocalipse, 11. 9

Anteriormente na saga de Zara, o caçador de anjos:



“Durante três dias e meio, os povos de todas as nações, tribos, línguas e raças olharão para esses dois corpos e não deixarão que sejam sepultados.” (Apocalipse – ou a revelação de Deus a João –, 11. 9)


Lá estava eu indo ao banheiro de uma loja de conveniência trocar de identidade. Não era seguro ser uma mulher árabe nos Estados Unidos, principalmente depois do que havia acontecido, então aproveitei aquele local sujo e vazio para me transfigurar em uma garota de pele acinzentada e ossos proeminentes, uma punk tipicamente britânica do tipo que vi quando visitei Gaar. Um moicano, talvez? – voilá. Esses tênis preto-e-brancos com a marca de um pentagrama não pareciam muito confortáveis, mas é o que essas punks usam, então que fiquem em meus pés. Um short e um colete jeans que deixam meu corpo mais esquálido ainda? Manda! E a maquiagem, claro. Não pode faltar um lápis de olho, um rímel, uma base para deixar o rosto mais cadavérico ainda... e os olhos? Cinzas, bem melhor. Sobrancelha fina e nariz bem menor, mas com pelo menos três piercings. No espelho, vi que eu seria taxado de anticristo no ato se Deus me visse assim no Céu.
Hora de ostentar dezessete anos nessa pele sem músculos e ir ao encontro de Atlai, o anjo da rodada. O homem que cuidava da loja de conveniência me olhou descrente, pensando que eu nunca havia entrado no banheiro, como saí lá de dentro? Eu era mal-encarada e ele simplesmente deixou essa pergunta para lá antes que eu causasse qualquer confusão no estabelecimento. Lá fora, nas avenidas pouco movimentadas de Nova York àquela época, vi que eu não estava tão diferente do modelito que muitos homens e mulheres adotavam, tanto que muitos deles eu não conseguia dizer de que sexo eram. Será que eram de algum?
Nova York era uma cidade fantasma, ou pelo menos uma cidade cheia de fantasmas. Um atentado terrorista nos prédios mais importantes do comércio americano havia matado milhares de pessoas há alguns dias, rendendo os nova-iorquinos (e, de certo modo, os Estados Unidos) em suas residências. Aquele era o terceiro dia de ruas desertificadas, comércio inativo e mortos-vivos perambulando pelas calçadas. Eu tinha que cruzar com o esqueleto desmantelado dos prédios para chegar ao prédio de Atlai, e circundando os corpos de concreto que abrigavam corpos de carne vi muitas pessoas chorando. Muitas mesmo, era como um grande velório aberto ao público. O Dia dos Mortos, mas sem comemoração alguma. E as caveiras pintadas eram de verdade, e pintadas com sangue.
(Ai, que medo. Sério, que medo.)


— Eu adorava olhar a paisagem antes do atentado — Atlai me dizia enquanto jantávamos no Veras, restaurante de grã-fino no terraço do edifício onde ela trabalhava como recepcionista. E, sim, ela me confirmou que não poderia pagar um ovo frito com o salário dela e que sim, ela tinha desconto de 50% por trabalhar no prédio. Mesmo assim, Atlai (Ou “Dana”, como dizia seu crachá preso à sua camisa abarrotada por seios avantajados demais) não tinha a menor vergonha de fazer suas refeições lá todo dia — Eu saía aqui de dentro, acendia um cigarro e olhava os prédios no pôr-do-sol em meu intervalo. Agora — Mordida no camarão empanado — Parece que tem sempre uma fumaça meio mórbida pairando em Nova York. Perdeu a graça.
Atlai me repreendeu várias vezes por causa de minha indumentária nada ortodoxa para aquele local, mas era exatamente com aquilo que eu me divertia. Se eu não podia andar por aí com um par de asas, que eu fosse diferente de outro jeito. Ela deu uma risada venenosa quando a respondi assim e bebeu um pouco de seu drinque de damasco.
— Me desculpa pelo escândalo lá embaixo quando você chegou, Zara — Ela dizia, me olhando com um furor apaixonado — Minha vida anda um caos, como a de todo mundo aqui... estou à flor da pele.
— Tudo bem, tudo bem — E coloquei minha mão sobre a dela, fazendo-a estremecer como uma criança tímida.
Já era a segunda vez que Atlai visitava a Terra. Na primeira – Rita, castelhana do século quinze, morta pela Inquisição -, ela havia despertado os sentimentos terrestres em seu coração angelical, o que a fez voltar corrompida ao Céu. Por causa de seus sentimentos implantados em sua nova vida, acabou manifestando coisas como amor e ódio. O ódio foi pelo inflexível Aminadabe, que a repudiava por ter fugido do Céu; o amor foi por mim. Ela voltou à Terra para que não me corrompesse, mas o reencontro seria, uma hora ou outra, inevitável.
Só que esse reencontro aconteceu na Terra, onde sentimentos podem ser manifestados. E aquela tremedeira dela era só uma amostra do que poderia acontecer.
— O país tá acabado, Zara. Você viu o que a CNN falou na tevê hoje? — Atlai continuava, fechando um dos botões da camisa que havia se desprendido por causa de seus melões torácicos, se assim posso dizer — Bush quer guerra, e provavelmente vai ter guerra. Se inventam de continuar com essa loucura aqui... Eles também queriam destruir o Pentágono, você viu? Nada aqui é seguro...
O anjo de descendência andaluz e lábios europeus apertou forte minha mão, procurando consolo e somente encontrando ossos frágeis. Suas preocupações mundanas me soavam ridículas – ela iria embora dali antes que pudesse ver o edifício Chrysler explodir ou algo assim.
— Você sabe que hoje eu te levo, não?
— Não, Zara, você não pode! Seria covardia da minha parte fugir do meu país numa hora dessas — Discursava Atlai, deixando uma lágrima sulcar sua bochecha corada — Eu... agora tô sozinha, Zara. Meu noivo e meu filho morreram ali. Já acharam os corpos no meio dos escombros e... só identificaram eles por causa das digitais, não havia rosto ou corpo o bastante para que eu pudesse fazer o reconhecimento — Pausa para um gole no drinque que esvaziou o copo dela e uma selvagem fungada de nariz para que desistisse dessa ideia de chorar — Tenho que honrar os dois, eram minha única família. Seria quase como suicídio... afinal eu vou deixar você me matar.
— O protocolo é assim: Só te levo se você deixar. Você tem ficha limpa aqui na Terra, não posso só te agarrar pela cintura e cortar sua garganta — Mentira. Eu tinha carta branca em relação às execuções, mas minha compaixão por Atlai não me faria ser tão duro com ela. Não naquela hora, pelo menos.
— Você poderia me agarrar pela cintura pra outra coisa, né Zara? — E ela, ao invés de segurar minha mão, trocou de personagem e começou a roçar levemente suas unhas vermelhas em minha pele, me fazendo arrepiar os pelos do braço — Você podia... não sei... ficar comigo aqui na Terra.
Hã?
— Hã?
Foi isso mesmo que ouvi?
— Eu te amo, Zara. Você cuidou tanto de mim lá no Céu... Com o perdão da palavra, você é um anjo. Mesmo entre os anjos, você é mais do que o esperado.
— Por isso estou nesse cargo de confiança e por isso não vou ficar na Terra — Retruquei prontamente. Essa tal de Dana havia dominado a mente de Atlai a ponto de enlouquecê-la, só podia ser isso.
— Eu vejo, lá embaixo, os escombros do World Trade Center — Ela continuou seu discurso inflamado como se eu nem tivesse aberto a boca. Mas lá estava eu, quase babando em meus cogumelos comestíveis — Sei que o mundo não vai mais ficar em paz. Tudo vai piorar a partir de agora, e o mundo não vai querer esquecer essa tragédia nunca mais. Esses três dias são só o começo. É mais ou menos como uma carta do Apocalipse, mas erraram de cidade americana quando mandaram a da Filadélfia — E, sim, ela conseguia fazer piadas naquela hora — Esse atentado é só um aviso de que o armagedom tá chegando e que... precisamos nos proteger.
— E eu tou sozinha, Zara. Preciso de uma pessoa comigo, e você, mesmo estando como uma mocinha punk, é com quem eu sempre quis estar, principalmente agora que preciso tanto de colo. Como estive sozinha no Céu e você me ajudou, agora você... você podia me ajudar aqui.
Perplexo, vi que não havia mais saída. Eram argumentos convincentes demais para que eu simplesmente a deixasse ser morta por mim depois disso tudo. Foi quando resolvi me entregar aos mais primitivos desejos carnais e a puxei para o banheiro.
(Por favor, só humanos e golfinhos fazem sexo por prazer, eu tinha que aproveitar. Talvez um dia eu voltasse para a Terra como golfinho, hã?)
Entramos no banheiro conversando disfarçadamente sobre algum assunto idiota e, em uma das cabines impecavelmente limpas de restaurante grã-fino, começamos a nos beijar. Ou melhor, ela me ensinou a fazer isso. E, por mais errado que fosse o que eu estava fazendo, era de fato algo bom e que satisfazia meu corpo esquálido.
Foi quando, em meio a apalpadas e gemidas de Atlai, que já cochichava em meu ouvido para que eu arrancasse a calça social dela, saquei minha adaga e a posicionei a poucos milímetros de seu pescoço. Sua expressão de prazer insaciável logo se tornara medo insípido.
— Não sou o amor da sua vida, Atlai.
Rá, te enganei, enganei Atlai, enganei o segurança, enganei todo mundo! Estou ficando bom em ser um humano.
— Não faz isso comigo, Zara.
— Menti para você. Posso te levar quando eu quiser. Pois é, eu menti para você. Não presto, sou uma vagabunda, uma imprestável, uma mentirosa, uma traidora. Não mereço seu amor tão puro e completo — Quase enxuguei a ironia da minha boca nessa hora.
— Eu te dou outra chance! Te dou o que quiser! Esquece essa besteira!
— Até logo, Atlai.
E, depois de um curto beijo na boca carnuda dela (porque não sou boba nem nada), vupt!, ela explodiu em plumas logo abaixo de meu nariz, me fazendo espirrar compulsivamente e acabar com os dois olhos irritados e inchados. Lavei-os na pia do banheiro e me olhei, ainda meio embaçada, no espelho de restaurante grã-fino, reluzente como o Santo Graal. Não podia mais mentir para mim mesma: Estava me tornando diferente. Por um momento, eu confesso, pensei em renegar essa missão e viver ao lado de Atlai, tamanho era nosso... hum, entrosamento na cabine. O sentimento de servir a Deus agora era inimigo de sentimentos vis e mundanos.
Mas o mundo já estava errado demais, não queria participar daquilo. Só Deus sabe o que me reserva se eu O trair.

Um comentário:

Anônimo disse...

wow!
lindo
*-*