9 de março de 2013

Tijolos amarelos

Parte 1: Cigarro mentolado
Parte 2: À sua maneira

Da série "Pecadoras", um encontro despretensioso

Original: http://goo.gl/lwE6f

— Como veio pra essa festa? — Penha perguntou, as coxonas brilhando sob as luminárias barrocas nas imediações.
          — Sou prima da mulher do dono da casa — a outra respondeu sucinta, apontando para qualquer canto com o cigarro quase inteiro.
          — Tudo de bom, hein? Você deve vir muito aqui!
          — Só quando não há nada mais interessante pra fazer — o vestido, então, girou lentamente na direção da moça dos penduricalhos.
          — Mas aqui tem... — Penha apontou para a piscina, onde algumas jovens escalavam ombros masculinos para brincar de lutinha.
          — Piscina? Seis quartos? Um salão de jogos e uma quadra poliesportiva? Um coreto? — indagou com sarcasmo nos níveis mais insuportáveis.
          — Tem um coreto aqui?
          — Pra lá — a mal-maquiada apontou com mais definição para além das árvores meticulosamente recortadas do jardim — Quer conhecer? Não estou aguentando essa música, mesmo...
          — Por que não? — e Penha desceu do banco, afinando as coxas que continuaram a ser grandes e suculentas como um pernil na noite de Natal. A piña colada seguiu sua mão, uma chupada no canudo.
          A mal-maquiada pulou de seu lugar, baixinha como era, e pela primeira vez notou como a malvestida, por baixo dos trapinhos vulgares, é uma mulher de porte olímpico. Mulher com M maiúsculo, em negrito, itálico e piscando. Coisa que ela, a do cigarrinho mentolado, nunca conseguiria ser com seu um metro e meio e porte de garça atropelada. Vida e morte, então, andaram lado a lado, atravessando uma escultura de flamingo e chegando a uma trilha de tijolos amarelos.
          — Quer um? — o vestido acenou o maço de cigarros à frente dos olhões de Penha, que catou um tubinho novamente feito grua. Estendeu o zippo e o acendeu para que a outra estimulasse o cigarro.
          Nunca acharia um desses lá no bairro, Penha pensou enquanto o sabor fresco da menta roçava sua língua e espiralava pelas narinas. Sua regatinha subia e descia com o fumo, mostrava as duas cerejas dançando pelas suas costelas. Tatuagem atiça, também. Ela sabe disso, quer borboletas no quadril e estrelas na nuca. Mais obra de arte do que já é, ela se imagina num futuro próximo frequentando essas mansões com suas tatuagens safadas. Faria amizade com essazinha antipática e teria passe livre para brincar com donos de imobiliárias, apostadores de jóquei.
          — Mágico de Oz — a mal-maquiada disse de súbito.
          — Hã?
          — Conhece? — perguntou, duvidosa.
          — Já ouvi falar... aquele conto de fadas do espantalho?
          Conto de fadas? O vestido quase enfiou a brasa de seu cigarro no olho de Penha.
          — É um livro. Enfim, você não deve ler. Eu ia dizer que...
          — Quem disse que não leio? — Penha retrucou, ofendida — O Bahia lá da banca sempre me empresta uns livros.
          A outra pensou o expoente literário que uma pessoa intitulada "Bahia lá da banca" deve ser. Francamente...
          — É mesmo? — indagou com desinteresse, as sobrancelhas arqueadas deixando os olhos mais apáticos ainda — O que você lê?
          — Uns livros ingleses, tipo Orgulho e preconceito, sabe? Ah, e Paulo Coelho também! — Penha respondeu animadíssima, um assunto em comum com a outra!
          — Hum — o vestido grunhiu feito monstro, mas Jane Austen foi surpresa — Bem, se não leu O mágico de Oz... leu Alice, pelo menos?
          — Só o comecinho, achei fumado demais — ela riu, os cachos tremendo nos ombros com o riso.
          — Deveria terminar. Acho um pecado quando não terminam um livro. Enfim, ia falar desses tijolos amarelos — e o metro e meio estacou na posição, os baixos saltos fazendo clec! na trilha. Penha deu um gole sem canudo na piña colada e olhou para o chão. Duas formigas cambaleavam perto à grama, algum pesticida forte dentro do corpinho delas.
          — O que tem? — Penha é como criança e só descobre o mundo à sua volta quando usa todos os sentidos. Ajoelhou, as coxas engrossando, e passou os poucos dedos livres na trilha cor de ouro. Lisa e rústica, uma pegada meio velha. Maravilhou-se com a riqueza de detalhes em cada tijolo, caminhos em baixo-relevo se descobrindo geometricamente a partir do centro. Uma das formigas se perdendo neles, um labirinto de horas para o insetinho. A unha longa do indicador, esmalte Noite de Sedução, de um roxo ofuscante, empurrou a formiguinha por cima da trilha dentro da trilha, pulando um, dois muros, até a relva aparada.
          O vestido se abismou com a inocência de uma puta dessas.
          — O antigo dono dessa mansão gostava muito do livro... e no livro tem uma estrada dos tijolos amarelos. "Follow the yellow brick road!"... — ela disse, estendendo os braços ao ar enquanto cantava — E mandou fazer isso aqui.
          — Muito lindo — a malvestida concluiu, ainda passando os dedos pelo labirinto entalhado. A outra nunca havia notado isso.
          Ajoelhou-se ao lado de Penha, acompanhando o baixo-relevo com os olhos funestos. Os caminhos se serpenteando em linhas retas até o rejunte, onde se fundiam com outras trilhas. Não que isso fosse algo relevante a ela, mas estava tentando simpatizar com a índole infantil do mulherão ao seu lado, queria tirar proveito dela. Tudo se resumindo em atenção aos trejeitos, à cor do esmalte, pois o vestido está cansado de ser só um vestido. Há quanto tempo não é mulher, mesmo?

Continua.