16 de março de 2013

Silêncio no coreto

Parte 1: Cigarro mentolado
Parte 2: À sua maneira
Parte 3: Tijolos amarelos

Da série "Pecadoras", um encontro despretensioso
Original: http://goo.gl/9gDcg

A dupla seguiu pela trilha de tijolos detalhadamente amarelos que não dava em cidade alguma. Dava no coreto, ocupado somente por um beija-flor que sacudia as asas em volta dele. Clec, clec, clec, os baixos saltos do vestido bordô subiam a frágil escadaria da construção, seguidos pelo cluc, cluc, cluc dos saltos agulha de Penha. Encostaram na cerca de madeira, a menor cruzando os braços nela e levando o cigarro à boca em intervalos repulsivos e a maior deixando a piña colada no assoalho e apoiando a cabeça nas mãos escoradas por cotovelos na proteção rústica.
          As mãos de Penha envolviam a metade inferior de seu rosto, como se ela sentisse dor de dente. Mas era só tédio. O silêncio seguiu até o vestido apagar uma bituca sem menta com dedos úmidos, para só então jogá-la na grama do jardim daquela Oz.
          — Sabe porque ninguém vem a esse coreto? — o vestido largou a frase assim como havia largado o cigarro. Saiu meio desajeitada, meio desesperada, meio "posso queimar se não me largar logo".
          — Não, por quê? — A malvestida trocava o peso de uma perna para outra, inquieta. O beija-flor estava igualmente inquieto, cadê a minha água?
          — O antigo dono tinha uma filha, Dorothy. Tinha sido criada para ser a princesinha do pai, mas cedo demais percebeu que estava para príncipe. Dizem que raspava o cabelo desde os dez anos e nunca chegou a beijar um homem.
          — Caraca.
          — Ela que construiu esse coreto. Fez curso de marcenaria e tudo mais. Só faltava tomar hormônio para crescer barba nela. Todos só a chamavam de Doro — o vestido contava a história calmamente, os pontos finais sendo muitos segundos de silêncio.
          — E ninguém vem aqui porque foi uma lésbica que fez o coreto?
          — Não. Porque ela foi morta aqui.
          — Caraca — Penha repetiu.
          — Ninguém sabe como, mas acabaram encontrando Doro jogada na escadaria com um buraco vazio onde havia o coração. Até hoje só encontraram um suspeito desse crime.
          — Quem?
          — O homem de lata — o vestido disse, reprimindo uma risada. Viu que Penha nem mesmo esboçou ter entendido a piada, então logo engoliu sua pequena alegria. Voltou a ser o borrão de rímel de sempre — Enfim. É verdade que ela foi morta aqui e a encontraram sem coração. Na verdade, sem alguns outros órgãos, também. E o braço dela estava a alguns metros do resto do corpo. Mas isso trouxe maus agouros para esse coreto, entende?
          — Mas essa treta toda aí é verdade?
          — Bem, são histórias que o povo conta. Me contaram essa aí quando eu ainda parava para ouvi-las.
          — Você ouve cada coisa... — e Penha se espreguiçou, seu cérebro havia dormido durante a contação de história. Olhou para o beija-flor, irrequieto no ar e ainda sem água, e se admirou com a ave assim como havia contemplado os tijolos há pouco. Tentou se erguer, debruçando-se na cerca, arrebitando sua bunda.
          O vestido não se conteve e acabou por dar uma olhadela em toda aquela carne. Não entendia como conseguia ter tamanha inveja de uma puta miserável como Penha. Aproximou-se dela, seu metro e meio não oferecendo resistência ao assoalho, e ficou a dois dedos da moça debruçada.
          Penha pensava em voltar ao epicentro da festa e conseguir um drinque diferente, talvez uma espanhola. Estava cansada daquele fala-não-fala, queria aproveitar a noite com toda aquela gente rica que sua prima garantiu. "Entra como Ivete", ela disse. "Sempre tem uma Ivete em festa de bacana." Deu o último gole em sua piña colada enquanto seguia os movimentos rápidos do beija-flor. Quietude. Sentiu braços a envolvendo sem muito jeito, e era o vestido. Arregalou os olhões até eles parecerem dois guaranás.
          — Mas o que...
          — Me ajuda. Por favor — a outra disse, solene.
          O vestido apertou o abraço, comprimiu seu rosto contra as cerejas de Penha; a testa se afundava no seio direito da outra. Os olhos se apertavam cada vez mais. Exaustos de se apertar por tanto tempo, tantas noites.
          — Eu não estou me divertindo — rematou, aconchegando-se em corpo alheio.

Continua.