23 de março de 2013

Cabo de guerra

Parte 1: Cigarro mentolado
Parte 2: À sua maneira
Parte 3: Tijolos amarelos
Parte 4: Silêncio no coreto

Da série "Pecadoras", um encontro despretensioso

Original: http://goo.gl/y6p6U

Penha sempre teve em sua mente o poder curativo de uma bebedeira. A primeira lágrima de tristeza significava a primeira dose de tequila, não havia erro. Descia até o chão, a bebida subindo até a cabeça, e a noite ficava sem gravidade depois da quinta lágrima, da quinta dose. Podia até cair, andando tão tresloucada, mas teria um colo no fim da noite. Acordaria salva, redimida de suas travessuras, como um pouso tranquilo após um voo turbulento. E seus problemas ainda estariam se engasgando com tequila, gim, rum, com o que havia entrado pela sua boca pecadora.
          O vestido agora era um biquíni. Emprestado de sua prima, era um amontoado de tecidos verde-musgo que mais pareciam vindos de uma colcha de retalhos. Mas era moda na França, segundo a revista, então compra pra mim, amor! E agora foi emprestado para o metro e meio sem muitas curvas, o biquíni folgado em sua pouca carne. Deitada numa espreguiçadeira, o corpo fresco de água de piscina, as doses no sangue que já chegaram a dois dígitos. Parecia sorrir para a Lua. A cabeça, levemente curvada ao alto, com certeza não enxergava, não ouvia, não sentia. Mas o sorriso estava ali, catatônico.
          Penha a havia curado, pelo menos por aquela noite.
          — Deixe-me dizer meus segredos — o biquíni falava delirante, os lábios se movimentando com lerdeza — Ah, nunca contei nada a ninguém. Sou virgem, sabia? Ninguém me quis, eu nunca quis ninguém. Ninguém com ninguém, sempre foi assim, sempre fui eu e minhas cartas de baralho. Sempre andando pra lá e pra cá, entrando de penetra nas festas, querendo ser femme fatale mas só conseguindo straight flushes. Todo mundo me acha misteriosa, "olha como ela é misteriosa" — distorcia a voz, apontando ao infinito com seu conhaque — E acabo sendo só a misteriosa, ninguém quer me comer. Ninguém quer levar mulher complicada pra cama. Só mulher fácil dá em festa, não adianta ter charme. Tem que ser fácil, tipo "I'm eeeasy"...
          Subiu na espreguiçadeira, os pés escorregando levianos no plástico molhado.
          — "Easy like sunday moooooooooooornin'...", é assim que mulher tem que ser se quiser ser feliz. Olha você aí — dirigiu-se a uma qualquer, acompanhada por beijos de outro qualquer — Você não quer parecer completa, homem não gosta de mulher completa. Homem gosta de completar, por isso esse cara aí quer completar o seu buraco. Que mulher dessas que chamam de, hã, modernas têm algum relacionamento? Elas se preenchem de trabalho, de pagar conta, não deixam espaço para o homem se enfiar. Entende, Penha? Entende? É como deixar espaço pra sobremesa. A mesma mecânica.
          A cem metros daquela piscina, no terceiro andar daquela mansão, os olhos de Penha acompanhavam o biquíni bêbado discursando aos convivas. Não conseguia discernir os gritos, mas acompanhava os movimentos, o conhaque se derramando pelo seu corpo, os braços sacolejantes de boneco de posto.
          Lá embaixo, os segredos continuavam.
          — Meu pai era um machista do caralho, por isso sou assim. Por isso acho que mulher é bicho inferior, que deve ser incompleto. Mas não foi Adão quem perdeu a costela? Somos incompletos num todo, então. Homem e mulher, homem e homem, mulher e mulher, todos se juntam para conseguir se completar, mas nossa natureza é a imperfeição. Deveríamos agradecer quando conseguimos um par de valetes, ninguém vive só de royal flush. Ninguém vive muito bem.
          A malvestida não estava mais vestida. Um lençol era o bastante, sua tatuagem translúcida sob o pano. Atrás dela, um qualquer — assim como o outro qualquer à beira da piscina — subia o zíper de sua braguilha. Suas feições afrouxadas após o orgasmo tinham o mesmo sorriso retardado do biquíni antes do discurso.
          — Você está me entendendo, Penha? — ela dizia, apoiando-se no braço de uma loira e confundindo-a com sua recém-amiga — É por isso que te amo, te amo! Porque você é incompleta, quase zerada, mas tão cheia de homens. Sou uma pecadora por querer ser diferente, ser mais do que apenas uma mulher, uma imperfeita — gole no conhaque — Meu pecado é o perfeccionismo, ah, querer que cada jogada da vida seja um flush. Às vezes entregamos as fichas à mesa de tanto desgosto. É decepcionante viver uma vida incompleta. É pecado, me queimem. Me queimem! — gritou, derrubando cubos de gelo na piscina.
          Penha fungou o nariz. Foi quando percebeu que algo quente embaçava seus olhos. Estava chorando enquanto via o biquíni pedindo para ser queimado. Aos berros, "amarrem-me a um tronco, sou uma bruxa!".
          Impressionou-se com o idealismo dela, cada papo-cabeça que trocaram antes dela se embeber de vez em álcool. As histórias do Brasil Império, as conversas sobre Kant e Descartes. Notou como sua bagagem era cheia, como não precisava se refugiar no vácuo de homens predadores para se sentir completa. Como pertencia à sua própria vida; como sua vida pertencia a ela mesma.
          Estava chorando por tê-la abandonado ao primeiro sinal de exagero na bebida. Sem o biquíni perceber, saiu de fininho para se aprochegar em algum círculo de amigos. Foi disputada por cada um, ficha de pôquer, até o broche do FMI de um deles brilhar aos seus olhos. Penha deixou-se levar, a cabeça se esvaziando pelo caminho à cama. Seu cotidiano de seu Zé, academia, novela das nove, rodinha de pagode, espetinho de kafta, esse cotidiano simplório saía pela culatra feito água de balde furado. Dependência errada, essa de um homem dentro de si para se completar.
          Via a outra discursar cheia de certezas para a classe alta que não precisa de idealismo. Para quem enfiar um maço de euros dentro da calça é o bastante para a sensação de completude. Ela era tão maior que todos que Penha deixou as lágrimas rolarem, copiosas, por sua pequenez. Seu pecado. Mas era questão de destino: Vida e morte não andam juntas. Começam assim, irmãs siamesas, mas puxam cabo de guerra ao primeiro sinal de existência. Logo não mais conseguem se enxergar, mas se rivalizam, tornam-se diferentes. Opostas. Esquecem que vieram do mesmo lugar, do mesmo pecado. Ambas são pecadoras.

Acaba aqui.