19 de março de 2013

Cortejo de Lúcifer II

O cortejo maldito continua de onde parou.

Original: http://goo.gl/tJlgW

Sou levado ao chão com ódio. Caio amordaçado, coberto até a cabeça por um saco de dormir, encasulado. Enclausurado. O zíper se abre, a luz do fogo dos olhos dela me incendeia, morro carbonizado a cada piscadela.
     Estou fraco. Meu peitoral inteiro arde, lacerado por chicotadas. Não seria tão perfeito se eu tivesse me autoflagelado, ela fez um ótimo trabalho. Me torturou com prazer, fincando dentes na minha pele e me horrorizando. Ela é horrível como o próprio Inferno, e tomo para mim, para sempre, a culpa de tê-la feito se tornar isso.
     Ela me põe de pé. Um papel de parede gélido me golpeia por trás, e ela levanta um de meus braços, paralelo ao chão. Prende fitas nele, prende as fitas à parede, meus olhos vendados tentam adivinhar se o sorriso dela já chegou às orelhas.
     O braço está preso. Não me debato, o sofrimento é parte de mim. O sangue é parte de mim, o sangue dela é parte de mim e ela o quer de volta, então martela um prego na minha mão suspensa. Imagino por quantos centímetros ele se estende enquanto rasga minhas veias e encosta na parede. A não-visão sob meus olhos se transforma em caleidoscópios de dor, cores roxas estalando vivas como luz negra. Isso é só uma grande festa.
     E eu sou o banquete.

Demora pouco até eu estar feito Jesus Cristo na parede. Os pregos enfiados até o talo da parede foram tão fincados que minhas mãos se curvam como uma flor se fechando. Ah, a flor da idade, da juventude, indo embora sob as mãos negras dela, o sangue pingando no carpete e fazendo um som surdo.
     Tuc.
     Tuc.
     Tuc.
     Ela adora isso, ri enquanto morde minha orelha até poder cuspir um pedaço dela.
     Ela é Van Gogh, sou seu auto-retrato. Sou Jesus Cristo, ela é Lúcifer. Sou tanta coisa, mas sei que a insanidade, a perversidade, vencerá essa batalha que pinga surda no chão.
     E ela me diz que tenho sorte de ainda estar pisando no chão, ela poderia muito bem ter me suspendido no ar. Pregado e sangrando em um altar feito especialmente para minha tortura. Cuspo algo, uma bolha que se vomita involuntária, e ela volta a rir com sua vozinha de duende. De doente.
     E tudo fica silêncio.
     Silêncio por tempo demais.
     Ouço aquela mesma risada abafada de outrora, à minha frente mas não tão próxima. Ela não pregou meus pés, mas não me atrevo a movê-los. Não consigo, a dor queima qualquer resistência. Imagino dez, quinze, vinte minutos se passando, e tudo que parece acontecer é o som surdo do sangue batendo no carpete e a risadinha semi-longínqua. Minha respiração é calma, a mais calma possível quando cada poro seu parece querer explodir. E eu explodiria em um suco de células mortas e arrependimento agora mesmo, a Vida Eterna está longe demais para eu ter esperança. Qualquer coisa está longe demais, até mesmo minha vida está no carpete e na boca de quem ri. Na boca de Lúcifer que me mastiga no último inferno, que masca o lóbulo arrancado de minha orelha.
     O que me resta é esperar. Esboço um sorriso. Passo a língua nos dentes pintados de vermelho e o sorriso parece mais verdadeiro. A dor é só uma amiga morta que a gente enterra no nosso jardim. Amiga, amiga, beija meu coração com sua boca cheia de larvas e depois desaparece (deixando as larvas). Estou sendo consumido pelo fogo, pelas larvas, pela não-visão entorpecente.
     A risada continua. Longe, cada minuto mais longe. Mata-me com sua própria morte. E eu espero pela morte sorrindo.