7 de novembro de 2012

Ratos fardados e gangues de rua

Siga de onde a história parou: Girassóis negros e balas de borracha.

Foto original: http://goo.gl/rpRpy

É muito fácil calar a boca desses universitários, o diabo em meu ombro cochicha. Não deixa de ser verdade: Um só tiro já faz a maior parte deles choramingar com um hematoma do tamanho de uma rodela de tomate nas pernas. Sim, nas pernas, porque colidir uma bala de borracha com as costelas ou a nuca de algum deles pode pendurar minha farda para sempre em um canto empoeirado do meu guarda-roupa.
     Mesmo assim, os tiros nas pernas deles doem demais. Hoje, exclusivamente, doem em mim. E enquanto os mais extremos se armam com pedregulhos e bastões de beisebol, eu e meus comparsas (porque isso que estamos fazendo não deixa de ser um crime) nos entreolhamos, convictos de que mais uma vez nossa embolorada Constituição esmagará implacavelmente cada espírito revolucionário que resolver se exaltar à nossa presença. Que coisa.
     Ele tem cabelos espetados e está a dez passos de mim com uma tábua em mãos. Meu cérebro registra essas parcas informações e dispara contra o joelho descoberto dele. O jovem se desequilibra com o projétil e cai no asfalto quente, gritando de dor por causa da provável rótula quebrada. A paisagem, enquanto isso, é de opressores e oprimidos que não têm a menor ideia do que estão fazendo.
     Por um momento penso que também estou sendo oprimido.
     Minhas mãos fraquejam com essa ideia e, inexplicavelmente, minha espingarda escapa delas. Ajoelho-me para resgatá-la. Pronto. De volta ao meu controle.
     Desde quando estou controlando alguma coisa?, me indago. Vamos combinar que só sou um pau-mandado do governo preguiçoso que prefere o futuro da nação chorando de dor e desalento do que incentivar a construção intelectual de um povo inteiro. Interromper a evolução do Brasil vale o soldo que ganho? Algum soldo valeria o preço de um país sem perspectiva?
     Meu filho está em casa, assim como o filho do tenente Andrade — que está coronhando a têmpora de uma afoita de jaleco —, como os gêmeos do soldado Senaga — que contém os estudantes com cotoveladas e empurrões — e como a pequenina do Homero, o aspira que nem aqui está. Porra, o aspira teve a filha com dezoito anos, está penando feito não-sei-o-quê na PM e ainda tem que cuidar da esposa e do outro filho dela. Esse tipo de coisa me abala, e ainda estou agachado na Avenida Paulista pensando que tipo de educação nossos filhos podem esperar de nós e que lição de moral um policial pode dar quando ele mesmo se abstém da moral para que possa pagar suas contas.
     Vejo meus amigos de cervejadas e mesas de pôquer violando o respeito, a cidadania e a verdade a que nós deveríamos ter direito. Muitas vezes penso que isso é só o medo de ir para a guerra e não deixar sua marca nela ou em alguém. Autoafirmação, puramente. Usam-nos feito ratos de laboratório, movidos por instinto e só. A única diferença é que ratos não conseguem empunhar armas.
     Mas sou um homem ou um rato?
     Levanto do asfalto. Senaga ainda está agredindo estudantes a troco de nada, e isso está fazendo meu sangue querer jorrar por todos meus poros feito água passando por uma peneira. Corro ao encontro dele, um dos inúmeros clones meus com a mesma roupa, o mesmo colete, o mesmo capacete e o mesmo crânio vazio, e me esgueiro entre ele e o amontoado de universitários.
     Futuros engenheiros, editores, antropólogos e veterinários transformados em uma gangue de rua. Essa ideia é tão indigesta que sinto um gosto pegajoso de bile nos fundos de minha língua.
     — Pare. — digo, olhando para as riscas orientais que são os olhos do soldado.
     — Hã? — ele retruca com um olhar desprevenido e desavisado.
     — Pare de bater neles.
     — Você tá louco? Sai daqui, vai — e as mãos musculosas dele seguram meu ombro e tentam me jogar desajeitadamente para o lado. Sou obrigado, então, a agarrar uma dessas mãos e torcer o pulso com um gesto veemente.
     Senaga grita com rispidez. Ajoelha. Massageia o pulso por poucos segundos. Volta a olhar para mim. A diferença é que esse olhar está avisado, atento e preparadíssimo para avançar.
     Em mim.
     Merda.

Continua.