17 de novembro de 2012

Anna Polly

Foto original: http://goo.gl/bQtMn

— Tô com medo, sabe? — A jovem falava pouco confortável no colo de sua mais recente namorada.
     — Cá, não precisa disso. Deixa rolar — A outra moça respondeu, passando as mãos no cabelo tingido de acaju da companheira.
     Faltavam quinze minutos para a meia-noite e o casal nunca havia dormido junto. Elas foram para um hotel por insistência de Carina, a de cabelo acaju, que tinha certeza de que não conseguiria dormir sozinha naquela noite. Lá, foi questão de poucos minutos para o casal se acertar naquela posição e ficar nela por horas a fio, conversando sobre o mesmíssimo assunto. Aquilo nunca havia perturbado Cari-na daquele jeito, não a ponto de deixá-la insone e de olhos atentos como os de um roedor. Nunca.
     — Mas, minha flor, tá tudo muito errado — Carina continuou.
     — Na verdade, as coisas estão bem certas, levando em consideração sua vida.
     Nada estava girando nos eixos normais naquele dia: Para começar, Carina não esbarrou em um móvel sequer quando acordou. Ela, tão acostumada com essas pequenas peças pregadas pelo destino, chegou até a voltar à cama e fazer todo o percurso ao banheiro de novo para ver se não havia desviado imprudentemente de sua estante ou do batente da porta. Nada. Pés e canelas ilesos, pela primeira vez em muitos anos. Escovou os dentes: Nada. Foi tomar banho: Nada. Até mesmo o pingo gelado que volta e meia caía durante o banho quente havia sumido. Suspeito. Carina saiu enrolada na toalha e, para não perder o costume, chutou de propósito o criado-mudo para sentir o desconforto que sempre sentia de manhã. Mas até mesmo aquela dor durou pouco, como se ela não quisesse se manifestar. Um dia de folga para as dores, algo assim.
     — Você sabe que as coisas não funcionam assim para mim, flor.
     — Já tava na hora de funcionar, então.
     Margarida – sim, a namorada que cedia o colo para a outra jovem – telefonou-lhe pela manhã. Conversaram normalmente, combinaram de jantar juntas em um sushi bar. Carina, depois, saiu para o trabalho e não teve o prazer diário de esbarrar em alguém ou tropeçar vergonhosamente naquela ladeira perigosíssima para saltos altos. Esteve a ponto de pisar em uma poça d’água só para sentir que sua ida ao trabalho não foi em vão, mas não queria estragar aquele pé sequinho e sem dores, então seguiu (a)normalmente.
     Na estação de rádio onde operava a mesa de som, foi chamada pelo chefe que a deu uma bonificação pelo trabalho prestado e metade do décimo-terceiro salário para que aproveitasse suas férias.
     — Férias? — Margarida perguntou.
     — Ele me deu um mês! — Carina respondeu.
     Ao acabar do expediente, seus colegas de trabalho saíram para uma cervejada e ela acompanhou, não teria aula na faculdade. Não poderia ficar muito tempo: Margarida a esperaria em duas horas. No bar, nada de mais: Os colegas de Carina até estranharam que nenhum copo tivesse se estilhaçado no chão pelas mãos de Anna Polly.
     Anna Polly?
     Sim, Anna Polly. Carina era a Pollyanna de H. Porter ao contrário, por motivos óbvios: Só via o lado ruim da vida. E, assim como guarda-chuva chama chuva, gente que espera coisa ruim chama coisa ruim. E, assim, chama Anna Polly. Naquele dia, no entanto, a chuva de pessimismo não caía de modo algum. Carina estava quase fazendo danças indígenas para alguma lâmpada explodir logo acima de sua cabeça ou sua geladeira parar de funcionar, pois estava tudo tão certo que ela parecia não viver a própria vida.
     — Credo, amor. Aceita que existem dias bons.
     — Não aceito: Sempre tem problema.
     — Você tem que parar com isso. Aproveita essa noite comigo!
     — Não dá. Vou ficar pensando nisso a noite inteira.
     — Olha, de verdade — E Margarida se levantou — Não vim para um hotel com você para ficar vendo você se lamentar por causa de um dia bom. Não consegue ver que tou aqui, louquinha pra ficar com você, e você tá pouco se lixando para mim?
     — Não é isso, é que...
     — É que o quê?
     — Faltam cinco minutos para a meia-noite. Se não acontecer nada de ruim, podemos ficar juntas.
     — Ah, pelo amor de Deus, eu vou embora. Cansei disso.
     Margarida, então, colocou a bolsa em seu ombro e saiu do quarto bufando de raiva. Carina até tentou impedi-la, correr atrás dela, qualquer coisa!, mas já era tarde demais. Mais uma namorada havia abandonado Anna Polly.
     Ela olhou o relógio: Três para a meia-noite. Missão cumprida.