2 de fevereiro de 2013

Janelas quebradas e pinturas descascadas

Siga de onde tudo parou: Little Boy ou Fat Joe

Foto original: http://goo.gl/15Ap1

O rosto do homem que entra pela porta segue o mesmo padrão dessa cela hospitalar: Bonito e maltratado. Vejo uma barba por fazer polvilhando desigualmente suas maçãs, olheiras e bolsas d'água sob as íris azuis e lábios ressequidos que demoram a se descolar para falar algo. Quando o fazem, seu portador está a dois, três metros de mim.
    — Você não deveria ter se levantado — diz sucinto, as mãos guardadas no jaleco. É um médico. Um médio jovem demais para as feições enrugadas que tem.
    Sento na cama e analiso sua pele negra, cor de noite. Cabelos raspados saem espetados lá e cá, e encrustado neles está uma faixa avermelhada de não-sei-o-quê.
    — É... você... — as palavras se articulam devagar em minha boca, acho que rolou um coma, nem que por só uma semaninha. Aponto igualmente devagar para a mancha que enrubesce o cabelo dele.
    — Essa porcaria não sai daqui — ele esfrega o borrão, sem alterá-lo ou enfraquecê-lo — É sobre isso que você queria saber?
    — É... é. — e me calo, tentando uma posição confortável na cama.
    — Como você está? — ele pergunta, a voz impassível como se esperasse um "estou péssimo".
    — Não tão mal... há quantos... quanto tempo eu...? — faço um movimento circular com a mão, indicando a cama.
    — Oito dias.
    — Hum — noto que minha boca exala, de si para si, um cheiro estranho de quem não come há um bom tempo. Suco gástrico misturado a fome, a barriga ronca de súbito.
    O médico vai à janela e contempla a mesma vista que tive há muito pouco. Posso vê-la da cama, e ela continua igualmente inóspita. Bonita e maltratada.
    Há um jardim seco na frente do prédio, devo estar no segundo andar pela proximidade. Begônias, orquídeas, todas com pétalas duras e pintadas de papel pardo pelo tempo. À volta do jardim estão incríveis bancos de granito rachados e imundos, centímetros de poeira sobre eles. À frente, mais prédios. Uns mais, outros menos, mas todos abaixo dos cem por cento: Rachaduras, janelas quebradas e pinturas descascadas saltam à vista como fungos que proliferaram com o descuido.
    Descuido. Essa palavra ricocheteia em meu cérebro enquanto admiro a desolação do que está à minha frente.
    — Nasci querendo ser artista, sabia? — o médico se vira para mim com um sorrisinho de igual proporção irônica e triste; dois em um — É, eu desenhava pra caramba desde bem pequenininho, tanto que fiz o logotipo da farmácia do meu pai com oito anos. Lia as agá-quês do Homem-Aranha, do Monstro do Pântano... Ah, Hellblazer, essa coisarada toda... Até a revistinha d'O Máskara eu lia. Queria inventar algo genial assim, um super-herói internacional, ganhar a vida com a minha imaginação e um lápis.
    Minha boca se mantém entreaberta, querendo dizer algo e não encontrando um motivo para tal.
    — Mas sabe como é família, né? Cortaram meu barato rapidinho aos dez, onze anos, quando começaram a fazer lavagem cerebral em mim. Eu teria que seguir os passos da família, a medicina. A vida pragmática, o bisturi, o sangue quase magenta das agá-quês nos meus dedos. Órgãos pra lá, filho pra cá, e lugar nenhum para que eu tenha descanso. Porque você sabe como é vida de médico: Você acaba com a sua vida enquanto salva a dos outros.
    Ele senta na cama, a pele como diamante negro bruto à luz da janela.
    — Me... me desculpa falar essas coisas agora, mas é porque... estou esperando pra falar isso há algum tempo. Há alguns anos, na verdade — murmura ressentido, olhando para os furos no meu braço ora povoados por agulhas, e volta os olhos ao horizonte nada promissor, retornando à voz dominante — Enfim, acabaram com a minha graça, com... com o meu sonho. Eu ia para a escola, ginásio, colegial, e sempre ouvia uns ecos lá no fundo da minha mente dizendo o meu destino inevitável. Eu desenhava nos cadernos, mas já não era a mesma coisa... comecei a desenhar corações, pulmões, fígados. Um esqueleto dançando no desenho livre da aula de Artes. Uma cabeça em carne viva na primeira página da agenda. Hã...
    O médico se perturba como se visse um esqueleto dançante num canto do quarto. Tremula, os ombros se desigualam em um arrepio horrível. Umedece os lábios enquanto minha barriga insiste em roncar.
    — Quer uma torrada, uma sopa...? — pergunta, mais solícito do que antes.
    — Pode continuar — digo com secura. Se minha frase fosse uma fruta, seria uma uva passa.
    Penso com meu avental onde essa história vai chegar.

Continua.