7 de fevereiro de 2013

Olhos brilhantes e enganosas conclusões

Siga de onde tudo parou:

Imagem original: http://goo.gl/CdWLG

— Então acabei o colegial ainda um pouco relutante, mas pronto para entrar na faculdade de medicina — o médico continua a falar, os dentes brancos se destacando na noite de sua pele — O problema foi que havia pouca confiança em mim e, quando fui prestar o vestibular, não cheguei nem perto de passar da primeira fase. Acho que porque fiquei desenhando nos cadernos ao invés de anotar matéria — responde-se, parece estar falando consigo mesmo e não com o grogue de avental aqui.
    Cruzo meus braços ao redor de meu ventre, segurando os movimentos indesejados dos meus órgãos famintos. Algo crocita lá fora. Um corvo, talvez. Nessa desolação...
    — Mas meu pai deu uma forcinha para eu entrar na UFRJ, sacomé. Um contato ali, um cheque acolá, e meu nome apareceu assim, puf!, lá dentro da faculdade.
    — E você acha isso bonito?
    — E você acha que tive outra escolha? Ou isso ou acabaria como caixa de uma das farmácias do meu pai.
    Emudeço. Ele sabe o que diz.
    — Até que me interessei pelo curso. Conheci muita gente, namorei bastante, fui em festa até a carteira rasgar de tanto dinheiro colocado e retirado. E me graduei, o diploma 'tá na sala de estar lá de casa, minha mãe faz questão de mostrá-lo pra todo mundo. "Meu filho fez UFRJ, olha o diploma! Ele é médico!", pá, pá, pá... Virei um título para eles.
    — Imagino a situação — digo sem encará-lo.
    — Mas eles não sabem em que situação estávamos durante o curso... em que estamos.
    Ele se levanta da cama, novamente se encontrando com o cenário de apocalipse zumbi através do umbral da janela. O jaleco amarrotado sacoleja com a brisa repentina, as mãos nos bolsos impedindo movimentos maiores do tecido. Aproximo minhas costas da cabeceira metálica do leito e alguma centelha em alguma fogueira em alguma parte bem longínqua da minha percepção diz que essa conversa inteira tem, sim, a ver comigo.
    — Existia um tempo quando as faculdades federais eram financiadas. Os cursos maiores, engenharia, direito, medicina, tudo novinho em folha pelo toque de Midas das empresas... enquanto os prédios de filosofia,  psicologia literalmente caíam aos pedaços. Mas até mesmo o ensino virou algo corporativo, e... bem, muitos fatores culminaram em... — as palavras se atropelam em sua garganta — As pessoas têm cada dia mais preguiça de aprender, e os professores são tão mal, hã, estimulados — e ele fricciona o indicador no polegar virado para cima, o gesto universal para dinheiro, grana, o vil metal — que a preguiça se estende a eles. Ficou muito mais fácil dar aula em facul paga por isso, pouco pra ensinar e menos ainda sendo aprendido. Jogaram o ensino de verdade no lixo, todo ele. O pouco que resta está sob preços exorbitantes e seleções totalmente injustas, e nem é tudo isso.
    — Não quero te amolar, mas...
    — O que isso tem a ver com você? — o negro se volta para mim, os lábios se apertando em raiva no estado bruto — Há oito dias você estava lá, em frente ao MASP, impedindo que pessoas como eu lutassem pelo nosso direito de nos tornarmos capazes de aprender algo numa faculdade federal. Tenho certeza que tudo que sabe sobre o estado de nossas universidades veio da televisão, do jornalzinho do metrô, de onde a informação chega distorcida, omissa. Você sabe essa paisagem horrível dessa janela?
    Silêncio.
    — Responde! — ele diz, quase gritando comigo.
    — Eu... é...
    — Vem cá — e sua mão firme me ergue pela axila, colocando-me à frente dos prédios deteriorados — Você consegue ver a paisagem agora?
    — Sim — respondo.
    — É assim por todo o Brasil. Saí lá do Rio e vim pra cá pensando que a situação seria melhor, mas não. Tenho conhecidos no Norte, no Nordeste, na fronteira com a Argentina e posso dizer que esse prédio da USP tem muita sorte de ainda ter coleta de lixo hospitalar.
    Sua mão continua apertando minha axila, sufocando qualquer glândula sudorípara ali.
    — Não é que nem os noticiários dizem: "Os índices de matrícula em faculdades federais andam caindo"; "A estrutura das universidades particulares mostra-se mais favorável aos jovens estudantes..."; isso tudo é balela. Isso é uma sabotagem velada das grandes organizações que querem transformar o mundo numa vila operária gigante. A mídia está sob o dedo do dinheiro, e você também. Você e todos os seus amiguinhos policiais, da GCM, do raio que o parta. O Estado está sendo comprado para se autodestruir e o jornalzinho do metrô não vai mostrar isso a ninguém.
    Penso em como eu pensava ter noção do que esses universitários passam. Penso na minha infância, na enganosa conclusão de o escuro onde meu pai me espancava era só para me meter mais medo. Penso em como achei estar sendo justo ao atacar Senaga e que essa foi outra enganosa conclusão: A justiça está tão longe daqui quanto o incentivo estatal.
    Ele aponta para mim o prédio de engenharia à esquerda, o da comunicação social à esquerda. Até o de oceanografia, seminovo, parece consumido por uma velhice bolorenta. Nenhum prédio se salva.
    Ninguém se salva.
    As próximas gerações acharão que mestrado é um título lendário.
    — Só queria que soubesse o que você alimenta — o médico finalmente diz, largando minha axila já inchada pela pressão — Ou melhor, o que você desnutre.
    Ele sai do quarto, então. Ouço-o gritar algo que é respondido por outra voz, um provável enfermeiro. Deve haver mais gente aqui, infiro, mas bem menos do que o recomendável. Sento na cama, massageando o ângulo sob meu ombro, e o remorso é tão grande que poderia ocupar esse quarto inteiro, todo o branco-azulado que me faz adoecer. Como foi ridículo da minha parte lutar por tanto tempo do lado errado, mesmo eu sabendo desse erro... É aquela sensação de sentir uma dor de cabeça e ignorá-la, só para saber meses depois que ela é parte de um câncer terminal.
    Sou a mão que morde quem deveria ser alimentado.
    Se os universitários se revoltam, se comportam como animais, não é culpa deles. Se nós, policiais, orquestramos um festival de balas de borracha contra eles, não é culpa nossa.
    Não sabemos o que estamos fazendo.
    Mas alguém sabe.
    Alguém ri disso tudo enquanto algo dourado brilha em seus olhos, bem longe dessa desolação. Tão longe da justiça quanto todos nós, mas cada dia mais abraçado à injustiça. Funde-se a ela. Seus olhos brilham.

Esse é o fim.