4 de janeiro de 2013

O remanescente

Conto inspirado em uma versão diferente de Gone Away.
Sem a fé de Alaor. 

O quarto estava estranhamente acolhedor. Era quase poético que o lugar onde tanta dor tinha se instaurado nos últimos dias pudesse realmente parecer receptivo de qualquer maneira... Meus joelhos, em carne viva depois de tanto tempo prostrado ao lado do leito, já não doíam. Talvez a sensação anestésica que vem depois de esvaziar uma garrafa de whisky tivesse me alcançado. Não me lembro de já ter estado tão cansado, não me lembro de já ter alguma vez na vida chorado tanto. 
O corpo estava despencando e meu lugar na cama parecia cada vez mais apetitoso, mas jamais me atreveria a deitar ali. Não tinha coragem de fazer qualquer coisa que colocasse em risco o pouco conforto e o sono cada vez mais torpe de minha mulher.
Nos últimos dias, ela parecia cada vez mais distante. Perdeu muito sangue durante o parto e seus ossos frágeis pareciam estar esfarelando, como se, pouco a pouco, meu sonho se estilhaçasse dentro dela. Os remédios, as orações, nem mesmo o violino que ela tanto amava ouvir... Nada parecia capaz de tirar minha bela adormecida de seus sonhos. Vi-me lembrando do dia em o médico tentou me avisar, de forma sutil, que ela não acordaria.
— Algumas pessoas ainda conseguem ouvir o que as outras dizem quando estão em coma... — Disse o bom doutor.
— Mas ela não está em coma... O Senhor mesmo disse! Ela só esta dormindo, cansada demais e com sangue de menos.
— Veja bem, meu rapaz: O quadro dela é complicado. Nunca achei essa gravidez uma boa ideia, e deixei claros os riscos que ela representava. A moça era teimosa demais pra aceitar a ideia e sonhadora demais pra desistir de ter esse bebê. 
Meu punho explodiu contra a parede atrás do homem de jaleco. Foi como se todos os ossos de minha mão fossem cair. Depois me peguei pensando se era essa a dor que ela sentia quando simplesmente esbarrava em alguma quina da mobília.
— NÃO FALE COMO SE ELA JÁ TIVESSE PARTIDO! FORA DA MINHA CASA, SEU INÚTIL!
Próximo à porta, ele se virou e disse:
— Vou torcer para estar enganado. Mas o Senhor deveria conversar com ela... Mal não vai fazer.
Continuei ali, com as dores internas e externas, ouvindo os barulhos dos aparelhos na cabeceira da cama e verificando os sinais vitais naquele monitor pixelizado. 

Todos os dias, desde o nascimento do nosso bebê, eu estive ali... Não conseguia ver meu filho. Eu o amei desde a concepção. Não da concepção física, mas do sonho de um dia ser pai. Mas não queria tê-lo nos braços sem que meu amor estivesse forte o bastante para abrir os olhos.
Ela parecia estranhamente confortável. Quando adormeceu pela primeira vez, seu rosto ainda tinha vestígios de dor e tinha muito suor em todo seu corpo. Agora ela poderia estar simplesmente tirando um cochilo embaixo de uma boa sombra. Mas o cochilo já havia durado dois dias e a única sombra sobre ela era a das Parcas. No princípio, achava meio patética e desesperada a ideia de conversar com alguém nesse estado, mas acho que eu me enquadrava exatamente na definição de patético e desesperado.
— Não sei se você pode me ouvir... Mas, se puder, não me deixe no escuro. Eu simplesmente não consigo acreditar que chegamos até tão longe pra nada. — Corri as mãos tão leves quanto foi possível por cima da mão dela, quase sem tocá-la, e tudo o que já parecia estar ficando gelado naquele quarto ficou frio o bastante para congelar o mundo. — Não posso cuidar dele sem você. Você vai ensiná-lo a patinar, ele precisa de alguém com seu juízo. Se não fosse por você eu viveria me enrolando em dívidas... Como o garoto vai crescer assim?! Como eu vou conseguir viver assim?! — Nenhum movimento, nem sequer uma pestanejada... — Acorde, meu amor... Eu sei que sempre discordei de você com relação à existência de uma divindade, mas essa é a primeira vez na minha vida que eu realmente espero por um milagre. Qual é a distância até o paraíso?! Eu escalaria até aí em cima, eu a seguiria se fosse possível. Mas eu não posso deixar nosso filho aqui. Eu te amo... Deus, por favor, me ajude.
Quando levantei o rosto de minhas mãos, ela estava com os olhos abertos, com algumas gotas escorrendo pela lateral do rosto, mas esboçando um sorriso. O sorriso dela. O sorriso de todos os sorrisos. Tocou meu braço com a ponta dos dedos macios e disse:
— Eu sinto como se o céu não fosse tão longe... Eu vou estar sempre olhando por vocês. Pense nisso como uma viagem longa. Nós vamos nos ver de novo. 
— Não fale... Não se esforce muito.
— Mantenha ele longe dessas garrafas, ok? E se ele for tão forte quanto a mãe, longe de degraus também. — Talvez eu realmente estivesse aceitando o fato de que ela estivesse partindo apenas como se fosse viajar.
— Vou manter... Talvez em outra vida, eu encontre você lá.
— Vou te esperar...
— Eu trocaria de lugar com você...

Hoje em dia eu não sei dizer ao certo como consigo diferenciar o que eu sei do que eu acredito. Talvez parte de mim tenha realmente ido com ela aquele dia no quarto... A parte que não acreditava. E talvez uma parte minha tenha crescido demais. Uma parte amarga que questiona aquilo em que acredito. O que eu acredito é que deve haver um lugar melhor do que este, que precisa haver... E que é pra lá que ela foi. Vou tentar merecer um lugar ao lado dela, se é que isso tudo realmente existe. O que eu sei é que depois de dois dias em seu último sono, meu amor veio a falecer. E, no terceiro dia, ninguém ressuscitou.