27 de janeiro de 2013

Monólogo de Marte: Minha mão de Deus

Estrelando Dr. Manhattan (link em inglês).

Foto original: http://goo.gl/23AB8

Seria leviano de minha parte dizer que, nessa imensidão rarefeita, não sei as horas. Sempre sei, e longe daqui, em uma fração ínfima da Terra tão cinza, já são sete horas da noite e os jantares estão sendo servidos. A carne que respira fumaça, o copo trincando por causa do refrigerante gelado, tudo apetitoso e paradoxalmente sem-graça para mim. Sem gosto, sem nada, engolir um balde de frango frito e lamber areia são a mesma delícia insípida.
    Há vinte anos, dizia para os poucos na Terra que ainda se lembram de mim com ternura que nunca mais voltaria ali. Talvez criasse vida humana Universo afora, desafiaria as leis cósmicas tão mutáveis em minhas mãos.
    Muito antes, meus dedos humanos tocaram os dedos de Janey Slater enquanto ela me passava uma caneca de cerveja.
    A caneca trincando por causa da cerveja gelada.
    Minha solidão é reconfortante, posso conversar com meu passado, meu futuro. Estou só, eu e a poeira de Marte, mas é como se uma multidão povoasse minha mente. Isso é diferente da solidão de quando me transformei no Deus americano, preso na câmara de campos intrínsecos. Aqui há um monólogo povoado. Um monólogo de tantas bocas, tantas bocas que se tornam unas.
    As bocas trincando por causa do coração gelado.
    A minha pele que respira fumaça.
    Há dez minutos, deixei atrás de mim a única foto de Jon Osterman que existe. Ao lado de Janey, tirada meses depois do passe de caneca. Muitos, muitos anos antes de eu precisar matar Walter Kovacs. Pode não parecer, mas até para um Deus a vida se torna algo complicado. Por isso não consegui criar mais vidas pelos outros astros.
    Muito longe de Marte, uma chuva de meteoros incandescentes polvilha e destrói um planeta cheio de seres répteis. A vida é complicada, mas acaba num estalar de dedos. E eu continuo estático, uma árvore imortal sendo cortada na navalha pouco a pouco, as vidas me escarando e fazendo correr alguma seiva que rola até o solo e se confunde com sangue.
    Em cinco minutos, a fração irrisória da Terra dará sua última garfada. Dez minutos atrás, minha única foto escorregou de minha mão de Deus. Quarenta anos atrás, meu corpo se desfazia e se reconstruía, debatendo sistemas nervosos e músculos enegrecidos pelas paredes de minha universidade.
    Quatro minutos para a última garfada.
    Um copo se racha por causa do refrigerante gelado, a mesa se transforma em um pandemônio. A vida é tão complicada, como conseguem dar tanta importância para isso?
    Eu sei a resposta, sei todas as respostas. Não me atrevo a fazer as perguntas, no entanto.
    Canso de me negar a indagar o porquê do amor, das carícias, das doenças venéreas. Do dinheiro, da tecnologia, das doenças mentais. O homem é criação do homem, um balde de homens fritos que acinzentou a Terra, e a simplicidade está longe demais do que qualquer um pode alcançar. Está tão longe de mim que estou em Marte à procura dela. Poderia estar na fronteira final e ainda assim estaria longe como pólos repelentes de um ímã.
    Marte trincando por causa do Jon gelado.
    Eu posso continuar isso até a Terra inteira ter jantado, almoçado e comido besteiras por um milhão de vezes, o monólogo nunca acaba. São muitas bocas, um grito só. Um grito eterno de liberdade trincando por causa dessa minha vida... tão... gelada.