20 de janeiro de 2013

Chuvas de verão



Era um dia típico de verão, que ainda tinha o bafo da embriaguez de felicidade das festas de ano novo. Alguns fogos de artifícios tímidos aqui e acolá introduziam nas primeiras horas do dia o som. Logo depois, começava a rotina alegre acompanhada pela música sagrada de cada bar de esquina. Os pandeiros ditavam o ritmo, que até então prevalecia na minha alegre Xerém, do samba.

Minha vó preparou o café preto enquanto meu vô trazia da padaria o pão quentinho. Quando ele chegou, ela se dirigiu até meu quarto e me acordou com um beijo na nuca dizendo:

— Acorda logo menino, tô atrasada pro culto!

Enquanto eu me revirava no lençol que forrava minha cama ela saiu apressada, mas não esqueceu de adicionar: — Ó toma se for ferver leite, toma cuidado com o fogão novinho! — Ela estava toda feliz de ter trocado o fogão, e provavelmente iria agradecer esta benção na igreja.

E eu simplesmente me torturava para acordar às sete da manhã de uma quarta-feira, era o meu dever cuidar do meu primo para minha tia trabalhar. Levantei e andei como um zumbi até o banheiro, me lavei e depois tomei o café preto da minha vó, o que por sinal foi como uma injeção de adrenalina no meu corpo. E às sete e quarenta e cinco lá estava Nilson, na porta, berrando meu nome. O moleque estava cada dia maior, preciso parar de "folgar" com ele, nota mental. Aproveitamos o dia de sol para bater uma bolinha na rua, junto com os dois filhos do vizinho. Como resultado, massacramos os pobres coitados. Mentira, perdemos, mas foi 3x2 pra eles. Nem vimos a hora passar, mas as nuvens típicas de verão já se aproximavam. Minha velha já estava em casa e preparando o almoço, no fim só ouvimos os berros dela:

— Já tá pronto! Vem almoçar!

Enquanto eu e meu primo comíamos feito cavalos, ficamos ouvindo minha vó narrar o culto e profetizar sobre o "toró" que estava chegando, parecia que ia ser bastante água, mas infelizmente eu não acreditava. Como toda criança preguiçosa de sete anos, após o almoço Nilson foi dormir. Eu fui ler o jornalzinho local. 

Depois de um tempo, percebi que meu quarto estava escuro demais para aquela hora da tarde, olhei pela janela e presenciei o mais terrível espetáculo da minha vida, parecia noite, mas era dia. O sol fora engolido pelas densas nuvens, e o clarão dos relâmpagos iluminavam parcialmente a minha cidade. Eu já sabia o que iria acontecer, e os pingos de chuva caíram, mas não como em "Singin' in the rain", eles caiam como pedras sem dó ou piedade de alvejar o que quer que fossem encontrar no chão de Xerém. E choveu, entretanto não como nos outros dias, a chuva parecia interminável.

Minha vó já estava rezando,  Nilson acordou e foi rezar também, eu não estava tão entusiasmado assim, a água parecia engolir tudo o que eu um dia contemplei. Sorte minha que moro em um ponto alto, pensei. Até que um imenso barulho estrondou e abafou todo e qualquer som alegre que já fora ouvido por aqui. Olhei pela janela e vi a casa do vizinho sendo engolida e levada por um deslizamento. Não havia tempo para raciocinar. Fitei minha família e meu vô gritou:

— A gente precisa sair daqui, agora!

Tentamos correr para um lugar seguro, seguíamos meu avô quando Nilson escorregou no lodo abundante, retrocedi alguns passos e o puxei com todas minhas forças, foi difícil e o desespero fazia do meu resgate algo quase impossível, até que consegui retirar meu primo. Sorri aliviado enquanto ele estava nos meus braços, porém ouvi novamente o temível estrondo, não existia outra alternativa, joguei meu primo para perto dos meus avós, depois tudo ficou escuro e úmido, escutei apenas alguns gritando meu nome, tentei responder mas minha consciência estava perdida diante da fúria da natureza. E tudo se movia violentamente,  meu corpo era arrastado em infinitas espirais escuras, onde eu me perdia, sem esperanças de me encontrar.

Eu nunca vou me esquecer daquela quinta-feira, na manhã do dia seis eu me encontrava soterrado, nenhuma parte do meu corpo me obedecia, enquanto isso minha cabeça estava cheia de dúvidas: Estou vivo? Onde estará minha família? Eu não tinha mais esperança, foi uma manhã sem música em Xerém. Entretanto a vida gosta de me enganar, por sorte dois bombeiros me encontraram no meio dos escombros. 

Depois de salvo, encontrei todos relativamente bem, infelizmente a família do vizinho não teve a mesma sorte. O sentimento de revolta ardia nas minhas feridas, foi quando vi uma figura conhecida em Xerém, um cantor famoso e no seu quadriciclo estava ajudando como podia as pessoas lá, foi quando percebi que não poderia ficar parado apenas sentindo raiva do ocorrido, esta figura me relembrou a música de todas as manhãs de Xerém, a esperança brotava novamente. 

Respirei fundo e decidi seguir o exemplo daquele homem, muita gente vai precisar de ajuda para recuperar o que perdeu e se depender desses braços aqui, eles terão todo apoio possível!

Texto inspirado na tragédia em Xerém.

"Durante a tragédia da chuva esta semana no Rio de Janeiro, quando três pessoas morreram e mais de três mil tiveram que deixar suas casas, um personagem chamou a atenção: o grande sambista Zeca Pagodinho, que tem um sítio em Xerém, a área mais afetada na Baixada Fluminense, deu um grande exemplo de solidariedade. E o Fantástico acompanhou.

Manhã de quinta-feira. As equipes de reportagem se espalham por Xerém, distrito de Duque de Caxias, no estado do Rio. Na madrugada anterior, o lugar tinha sido devastado pela chuva.

Dois homens morreram em Xerém, onde mais de 1.200 pessoas tiveram que deixar suas casas.

De repente, entre os voluntários que foram às ruas para ajudar os vizinhos, aparece o cantor Zeca Pagodinho. Ele e a filha Elisa tinham acabado de passar pela parte mais atingida pela chuva."

Fonte: 
http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2013/01/fantastico-acompanha-doacoes-de-zeca-pagodinho-aos-abrigos-de-xerem.html

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Abraços do Marceneiro.