17 de janeiro de 2013

Little Boy ou Fat Joe

Siga de onde tudo parou: Abutres famintos e loucura às cegas

Foto original: http://goo.gl/pAGIX

Não sei se ouço qualquer barulho, mas consigo ver o corpo do universitário desferindo um giro totalmente desesperado e involuntário no ar. O bastão de beisebol que segurava fez um estalido quando colidiu com o chão e agora está rolando despretensioso para o meio da rua.
    O que foi que eu fiz?, me pergunto. Vejo Senaga, ensanguentado e com um dente canino preso somente por um fio de raiz, e também vejo os abutres sobre ele devolvendo o olhar. De que lado você está, afinal?, eles querem me perguntar. E minha resposta é curta, rápida e eficaz: Não sei. Por acaso preciso de um lado? Sinto vontade de ser Little Boy ou Fat Joe e mandar o centro de São Paulo para a inexistência atômica.
    Mas as coisas acontecem rápido demais e não consigo fazer fissão dos meus próprios átomos antes de todos os universitários e policiais à volta resolverem se aproximar como um enxame de vespas. Ainda vejo o jovem com o crânio amassado sofrendo espasmos, deve estar prestes a convulsionar, vomitar, morrer. Algum estudante de medicina parece estar virando-o de lado para que ele não sufoque com o próprio vômito, mas não preciso me preocupar com isso quando tenho dois exércitos opostos contra um mal comum: Eu.
    Só me resta lutar.
    Com a espingarda em mãos, ataco desesperadamente qualquer um à minha volta com tiros e chutes. Sou um iniciante jogando Duke Nukem. Um tiro de borracha trinca o lado esquerdo do meu capacete e sou obrigado a conviver com um projétil em frente ao meu olho enquanto brinco de chacinar, adiar o inadiável. E lá se vai um policial, um estudante de direito, outro policial, duas estudantes de fisioterapia, esse que parece um professor.
    Eu já nem me lembro mais por que tudo isso começou, mas não é hora de parar.
    Só paro quando alguma mão enluvada puxa a gola de minha farda para baixo e enfia um taser em minha nuca, cacete! Ai, mas que... Ah.

[ . . . ]

Tudo é branco quando acordo e seria muita sorte se eu tivesse ido para o céu. Prefiro acreditar que é um hospital, mesmo.
    Sento na cama e, nossa, tudo dói. Até mesmo meus cílios parecem sentir dor, quero um analgésico agora. Meus olhos não abrem direito, mas é realmente um hospital branco-azulado, aquela cor doente que deixa os doentes ainda mais doentes. E sei que não é o hospital para onde vou normalmente, o da própria polícia. Então...
    Nenhum médico, nenhuma enfermeira passa por mim, e me sinto no começo daquele seriado de zumbis. Será que o coma foi tão grande assim? Sei que tudo dói, devo estar deitado há muito tempo... e nem me lembro o porquê. Só me lembro do tiro, da cabeça amassada do moleque, do MASP, do piche quente da Paulista. Nada que justifique esse sono de Bela Adormecida, e espero muito que nenhum príncipe tenha me beijado. Limpo a boca por reflexo, não há nem sombra de ser vivo por aqui.
    Vejo os tubos inutilizando meus braços, não posso sair daqui. Ooooi, grito. Nada além de um eco babaca. Alguém? Outro eco. Esse hospital deve estar mais abandonado do que o Palácio do Planalto, mas meu corpo lateja tanto que prefiro deitar mais um pouco antes de traçar minha fuga.
    O teto está descascado, constato enquanto minha cabeça afunda no travesseiro fino. As grades de minha cama estão corroídas, até mesmo a cortina parece não ver um aspirador desde a morte do Senna. Mas a luz do prédio não foi cortada, isso é estranho. Meus aparelhos funcionam normalmente, mesmo esse trequinho no meu dedo para certificar os médicos de que ainda estou vivo. Qual o nome disso? Será que tem uma embalagem em algum lugar...?
    Isso não é prioridade. Sabe o que é? Sair daqui, então danem-se os tubos. Acho papel higiênico em uma gaveta e uso-o para estancar o sangue de logo após retirar as agulhas de dentro de mim. Quanto tempo elas estão aqui dentro, desde a eleição do Lula? Sério, não vou me impressionar se acabar vendo carros voadores janela afora. Mas sinto um medinho de mexer nessa cortina empoeirada, vai que... né? Espero alguns minutos na cama, paralisando a emissão de sangue pelos buraquinhos no antebraço, e a janela pode esconder Atlântida, a Lua ou até mesmo a era Cenozoica. Tudo menos a normalidade, nada parece muito normal nesse hospital.
    Parou, sangue? Parou? Isso mesmo. Pulo da cama com meu avental chiquérrimo de paciente e, com cuidado, puxo a cortina para a direita. Uma luz acinzentada entra no quarto com alegria, há quanto tempo não faz isso? Posso ver com mais clareza os vasos de flores mortas no criado-mudo próximo à porta, um espelho ensebado, a cama vazia (e impecavelmente arrumada) ao lado da minha. Parece comum, mas parece abandonado. Não dá mais para puxar a cortina e sei que vou me encontrar com o mundo lá fora depois de muito tempo, ou é o que sinto. Vai que tudo é só alguma predisposição do meu coma a pensar desgraça e só passei uma noite aqui, mas então que raio de hospital carcomido é esse?
    Olho pela janela.
    Ao mesmo tempo, ouço a porta rangendo ao abrir.
    Não sei o que me surpreende mais.

Continua.