11 de julho de 2012

A mandinga do mendigo


           Um morador de rua, em um desses dias tão ensolarados que você não espera que nada de ruim aconteça, gritou com uma moça que passara por ele com desdém, chamando-o de sujo. O homem barbado e desgrenhado – evidentemente sujo – levantou-se com velada dificuldade e gritou com sua voz rouca e igualmente suja:
            — A nossa única diferença é que sua sujeira não tá na pele.
           
Aquela moça, coitada, não deu importância para o que ele disse. Mas, como um vírus pretensioso que se aloja na mente, a frase cresceu e se multiplicou no vazio dela. Uma mulher – sim, já era uma mulher – que de desfez da cultura e da formação para prostituir sua moral em troca de dinheiro estava infectada pela sujeira daquele mendigo. Quando ela percebeu, a frase ricocheteava tão forte na cabeça dela que começava a fazer sentido.

Quando ia para a cama com seu chefe, sentia uma irritação tão repulsiva na pele que não conseguia ficar na cama dele por muito tempo. Quando ia à casa de suas amigas de fachada, sentar no sofá delas pinicava sua tez a ponto dela arrancar filetes de sangue de seus braços.
Seu próprio escritório não era confiável: Embora tivesse pedido no mesmo dia para que a faxineira desinfetasse três vezes seu local de trabalho, a coceira continuava.
Banhos e mais banhos. Pele e mais pele no ralo.
Ela cortou as unhas para que não se mutilasse mais do que já havia feito.

— Sua sujeira, moça, ‘cê esconde onde vive.
O mendigo continuou o raciocínio alguns dias depois, quando ela tornou a passar por ele. A moça ameaçou pisar nele com seu salto agulha, mas não queria ir presa.

Mais um vírus havia sido instalado. Ela notou, afinal, que toda sua vida promíscua – e a vida desprezível das pessoas com quem mantinha contato – estavam escondidas em sua casa, em seu escritório: Embaixo de seu colchão, dentro de suas gavetas.
Trocou a mobília da casa e mudou de escritório. Melhorar a conduta, nem pensar. Mas a coceira continuava.

— Só me pede desculpa.
O mendigo implorou, ajoelhado, e ela simplesmente estapeou o rosto dele, depois pegou um frasco de álcool gel e desinfetou a mão.
Ele, insistente, continuou:
— Nada vai te limpar enquanto tudo for traição.
Ela foi embora.

Ela havia se tornado mais sensível à sujeira moral alheia. Andar na rua já era algo complicado demais para a moça executar. Começou a frequentar religiões para se ver livre da mandinga do mendigo. Banhos de ervas e leituras da Bíblia de nada adiantavam.
Não era isso que ia limpá-la, pensou em um momento de lucidez.
Desistiu do caso com o chefe. Foi despedida, mas a consciência começou a ficar menos nebulosa. Resolveu fazer uma faculdade, voltou a falar com os pais. Começou a fazer amigos de verdade. Mudou sua vida inteira.

Em um dia chuvoso, daqueles que você espera que dê tudo errado, ela passou pelo mendigo. Olhou fundo nos olhos dele, e o mendigo viu que os olhos dela estavam diferentes.
A moça se aproximou, ajoelhou à frente dele. O morador de rua esperou que ela falasse alguma coisa.
Ela, por sua vez, pegou um canivete e retalhou o rosto dele.
— Você acabou com minha vida. Eu tinha tudo que uma pessoa sempre quis. Você me fez abdicar de tudo por uma vida medíocre, seu inútil.
— De nada.
Assim ela foi embora. A mandinga, não.

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