Um morador de rua, em um desses dias tão ensolarados que você não espera que nada de ruim aconteça, gritou com uma moça que passara por ele com desdém, chamando-o de sujo. O homem barbado e desgrenhado – evidentemente sujo – levantou-se com velada dificuldade e gritou com sua voz rouca e igualmente suja:
— A nossa única diferença é que sua sujeira não tá na pele.
Aquela moça, coitada, não deu importância para o que ele disse. Mas, como um vírus pretensioso que se aloja na mente, a frase cresceu e se multiplicou no vazio dela. Uma mulher – sim, já era uma mulher – que de desfez da cultura e da formação para prostituir sua moral em troca de dinheiro estava infectada pela sujeira daquele mendigo. Quando ela percebeu, a frase ricocheteava tão forte na cabeça dela que começava a fazer sentido.
Quando ia para a cama com seu chefe, sentia uma irritação tão repulsiva na pele que não conseguia ficar na cama dele por muito tempo. Quando ia à casa de suas amigas de fachada, sentar no sofá delas pinicava sua tez a ponto dela arrancar filetes de sangue de seus braços.
Seu próprio escritório não era confiável: Embora tivesse pedido no mesmo dia para que a faxineira desinfetasse três vezes seu local de trabalho, a coceira continuava.
Banhos e mais banhos. Pele e mais pele no ralo.
Ela cortou as unhas para que não se mutilasse mais do que já havia feito.
— Sua sujeira, moça, ‘cê esconde onde vive.
O mendigo continuou o raciocínio alguns dias depois, quando ela tornou a passar por ele. A moça ameaçou pisar nele com seu salto agulha, mas não queria ir presa.
Mais um vírus havia sido instalado. Ela notou, afinal, que toda sua vida promíscua – e a vida desprezível das pessoas com quem mantinha contato – estavam escondidas em sua casa, em seu escritório: Embaixo de seu colchão, dentro de suas gavetas.
Trocou a mobília da casa e mudou de escritório. Melhorar a conduta, nem pensar. Mas a coceira continuava.
— Só me pede desculpa.
O mendigo implorou, ajoelhado, e ela simplesmente estapeou o rosto dele, depois pegou um frasco de álcool gel e desinfetou a mão.
Ele, insistente, continuou:
— Nada vai te limpar enquanto tudo for traição.
Ela foi embora.
Ela havia se tornado mais sensível à sujeira moral alheia. Andar na rua já era algo complicado demais para a moça executar. Começou a frequentar religiões para se ver livre da mandinga do mendigo. Banhos de ervas e leituras da Bíblia de nada adiantavam.
Não era isso que ia limpá-la, pensou em um momento de lucidez.
Desistiu do caso com o chefe. Foi despedida, mas a consciência começou a ficar menos nebulosa. Resolveu fazer uma faculdade, voltou a falar com os pais. Começou a fazer amigos de verdade. Mudou sua vida inteira.
Em um dia chuvoso, daqueles que você espera que dê tudo errado, ela passou pelo mendigo. Olhou fundo nos olhos dele, e o mendigo viu que os olhos dela estavam diferentes.
A moça se aproximou, ajoelhou à frente dele. O morador de rua esperou que ela falasse alguma coisa.
Ela, por sua vez, pegou um canivete e retalhou o rosto dele.
— Você acabou com minha vida. Eu tinha tudo que uma pessoa sempre quis. Você me fez abdicar de tudo por uma vida medíocre, seu inútil.
— De nada.
Assim ela foi embora. A mandinga, não.
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