24 de dezembro de 2012

Nostalgia

Retirado do filme Watchmen (2009).

— Que perfume é esse em você?
— Nostalgia.
Laurie Juspeczyk e Daniel Dreiberg, Watchmen

Ele não sabe que ouro é esse que vira areia com o passar do tempo. Ou melhor, repensando sua reflexão, como as lembranças tão brilhantes e valiosas de um passado tranquilo se transformam em longínqua e inalcançável El Dorado sem valor algum. Uma action figure em uma caixa inviolável, um diamante que retroativamente volta a ser carvão.
     Não sabe quando começou a revirar as caixas, talvez um milagre natalino que tenha concedido um espírito de faxina por um dia. Achou dez reais em moedas jogadas pelas frestas dos móveis e esses álbuns de fotografia. Um espelho de mão, daqueles que uma mãe d'água usaria enquanto canta, estava sob a máquina de costura carcomida de sua falecida mãe. O vidro estava trincado e só refletia uma distorção psicodélica, uma visão louca de olhos perturbados. E ele não sabia quando havia encontrado o espelho, mas não sabia como parar de olhar. Jogou-o para o lado quando lembrou que ele era da sua irmã, aquela que fugiu com o único carro da família e hoje está em alguma ilha caribenha acompanhando magnatas europeus em jantares. Tudo bem, tudo bem, ele suspira e continua a agarrar coisas estranhas no fundo do guarda-roupa, sob a cama. Monstros. De pelúcia, da infância. Um deles tem tantos olhos que não tem nariz, e por um momento ele sentiu o medo de seus seis anos de não possuir olfato. Tinha uma menininha na escola, a Luana, que cheirava bem demais para ser ignorada. Sabonetinho e perfuminho tão marcantes que ainda o atordoam quando alguma falsa Luana os exala em um elevador ou vagão de metrô. Não sabe mais dela, por que não? Não é a hora de saber? Faz tempo que ele não sente um cheiro bom, a rinite atacada por causa do fumo excessivo.
     Ele liga uma memória a outra, um efeito cadenciado de neurônios, e encontra a foto daquele 1º C. Prô Irene, que só agora ele percebeu ser uma potranca. Ela ensinava bem, era o que importava. E dá para sentir o cheiro da Luana pela fotografia, e isso que ela sempre sentava tão longe dele. Sai de casa, compra o perfume, um envelope e forja sua própria droga: Uma borrifada de Luana na foto guardada no envelope. Um ato mágico como transformar vassoura em cavalo ou par de meias em bola de futebol. Talvez um dia ele a encontre e descubra que ela não cheira tão bem, então voilà! O envelope se abre na fuça dela e a nostalgia a arrebata, a faz inconsciente. Ela irá para o Paraíso durante algumas horas e acordará na casa dele, satisfeita com o velho horizonte que se renovou. Há quanto tempo ele não sentia um amor assim? Tempo o bastante para se apaixonar por uma pessoa que com toda a certeza do mundo (ênfase absurda nesse trecho, como se a mãe dele gritasse que com toda a certeza do mundo escalar o coqueiro do quintal garantiria hematomas e choradeira) mudou da água para o vinho. Se bem que vinho é muito melhor do que água. Suas mãos ossudas nem mesmo ostentam aliança, então a ideia de modo algum é ruim. Quatro meses desde a última tentativa de amor — que resultou em uma pílula e nenhuma ligação do dia seguinte — e ele está com sede de vinho.
     A sociedade é muito favorável ao amor desde que ele se tornou, além de motivação, consumo. Em uma caixa lacrada que pertencia ao seu pai, só achou vinis de amor: Roberto Carlos, Nat King Cole, Roberto Carlos, Andrea Bocelli, Roberto Carlos, Celine Dion, Roberto Carlos. Um do Ultraje a Rigor perdido ali e um dos BeeGees que o fez chorar. Parecia que tinha sido combinado quando "I started a joke" timidamente se esgueirou entre os presentes no velório do pai. Era o celular de um parente distante que nem sabia que banda era, só gostava da música e pronto. Foi o bastante para eternizá-la. Foi quando o consumo de cigarros dobrou e o perfume de Luana se perdeu em algum muco nasal inodoro.
     E era horrível para ele perceber que a vida faz sentido. Sim, faz, e a namorada do colegial influenciou o emprego da meia-idade que era reflexo do heavy metal da adolescência que ele só ouvia porque tinha raiva do fato de nunca ter falado com Luana. Esse era só um exemplo, mas — pior ainda! — com o passar das caixas reviradas e dos álbuns revisitados ele também notou que tudo convergia a ela, a mocinha de seis anos meio morena, meio gordinha, meio sorridente, meio tudo que sempre pareceu a completude dos extremos dele. Como se ela fosse o Big Bang de sua vida. O milagre natalino, ah, ele entendeu!, é o Big Rip. É quando tudo se recolhe, as mortes acontecem, as paisagens esmaecem e a vida volta a ser só um ponto cheio de luz em um lugar onde não há tempo nem espaço. O envelope com a foto parou no bolso de trás, junto da passagem do ônibus e do dinheiro para uma caixa de chocolates. O universo está se comprimindo, não há mais espaço para luzes ofuscantes e lágrimas fúteis. Encontraria Luana antes do fim e saberia que, mesmo ela tendo um marido, três filhos, dois carros importados na garagem, alguns antidepressivos no criado-mudo e nenhuma lembrança da primeira série — como ele descobriria mais tarde —, os pares de olhos se encontrariam em um ato mágico e duas crianças de seis anos se tocariam em um mundo além dos cinco sentidos para que aquele momento estivesse no pontinho de luz infinita de quando só a última lembrança boa restar.

***

Olá, Mínimos e Mínimas!

Bem, esse é o meu último texto de 2012 no Mínima Ideia. Também mereço um descanso, não? Afinal, vocês sabem que o que postei esse ano não foi brincadeira.

Mas, antes de partir, gostaria de desejar ótimas festas a vocês. E que não sejam só festas, só Chester Assa Fácil e pisca-pisca na janela, mas sim uma grande confraternização, a comemoração de uma esperança renovada, de energias recarregadas, pois ainda há tempo. Tempo de fazermos tudo, de conquistarmos o mundo, tê-lo em nossas mãos, sermos quem nós quisermos.
E muito, muito obrigado, em nome do blog, pelo retorno incrível que todos nos deram em relação a tantos textos, tanta divulgação ostensiva, tantos links compartilhados. 2013 está aí para ser um ano de muito mais escrita, podem crer.

Isso é tudo, pessoal. Por mim, digo.
Até o ano que vem, e não dirijam alcoolizados. Já vi acidente na minha frente em noite de Natal e não é brincadeira, quero o melhor de tudo para vocês. Comam e bebam muito, façam piadas sem-graça (menos a do pavê, por favor) e dancem ao som de qualquer coisa (ou até mesmo de som nenhum). Vivam esse Natal e esse Réveillon com a intensidade que querem para 2013.
A gente se vê! (Por aqui, claro.)