6 de dezembro de 2012

Chegou a minha hora

    

— Acho que chegou a minha hora.
     Já não havia mais choro nos olhos dela. Parecia que tinha finalmente cedido à pressão dos anos que se passaram. As rugas, tão profundas quanto os suspiros das viúvas nas lápides de seus maridos, agora lhe davam um aspecto medonho e canhestro.
     Ela, que antes fora tão jovem e jovial, agora estava ali, enfrentando a verdade final de todos nós mortais.
     Finalmente sua hora chegara.
     Vinha adiando-a com remédios, orações, mandingas, trevos de quatro folhas, ferraduras, mais remédios, uma melhor alimentação... Mas nada daquilo lhe adiantara. Estava fraca, mais fraca do que nunca, e sabia disso.
Olhava bem aqueles olhos azuis refletidos no espelho e imaginava como havia parado ali. Não conseguia se lembrar, isso fora há muitos anos, e ela insistentemente os apagara da memória. Talvez, só talvez, fosse melhor assim. Quem sabe um dia algum escavador a encontrasse ali, e se perguntasse como ela vivera, quais eram seus hábitos, suas vontades, seus amores, seus delírios e delitos.
     Haveria de encontrar respostas para essas perguntas na própria história do mundo.
     Ela era o mundo agora. Fincava os pés dentro dele, como uma árvore cujas raízes se entranham na terra, em busca de alimento. As plantas de seus pés não buscavam alimentos, mas uma ligação. O mundo estava ali, mas não parecia notá-la; precisava, então, que ele sentisse seus pés rasgando-o.
     E ela, sentada sobre uma cadeira baixa, de madeira, um pouco carcomida nas extremidades do tampo quadrado, fincava os pés na terra batida, enquanto olhava para o espelho à sua frente, seguro por sua mão trêmula e velha.
     Algumas gotas de choro caíam sobre seus joelhos ralados e pelados. Ela conseguia entender que sua hora havia chegado, mas ainda assim era muito doloroso.
     Não se lembrava mesmo como havia parado ali, e não ousava olhar ao seu redor. Somente conseguia olhar para o espelho e o reflexo de seus olhos azuis.
     Se pudesse olhar em volta... Aquele frio começava a fazê-la tremer os dentes e lábios. Talvez estes tremessem de medo, ou por causa do choro, mas ela não sabia diferenciar mais. Estava muito cansada, só queria dormir.
     Sua hora chegara.
     Naquela caverna mal iluminada e fria, ela partiria com um sopro de vento, como uma flor num vendaval. Sua vida frágil lhe escorria pelos pés, enquanto ela se afogava no mar de seus olhos. A terra a comia aos poucos, pedaço por pedaço, célula por célula. Os olhos marejados começavam a ficar cada vez mais opacos, como se ela estivesse dentro d’água, afogando-se. Num último clarão de vida, suspirou o mais forte que pode e inclinou-se, caindo da frágil cadeira diretamente num buraco em formato de boca que se abrira à sua frente no chão.
     A terra finalmente a engolira. Podia descansar.