10 de dezembro de 2012

Cortejo de Lúcifer

Foto original: http://goo.gl/aKbgH

Fecham-se as algemas em meus punhos erguidos. Uma corrente presa à roldana aos fundos do porão puxa esses braceletes carcerários para que eu possa seguir a mesma direção dos meus braços mirando o céu, mirando poeira cósmica.
     — Está doendo? — A mulher que gira a roldana diz em silvo. Ela sabe que não quero uma só voz nesse recinto. Limito-me a olhar para ela com o canto de meus olhos e ela curva o rosto para baixo em um pedido de desculpas.
     Está doendo, sim. Mas doerá mais, pois até toda dor se tornar física não terei a dimensão dela. Até eu ser morto — não cometer suicídio, por favor. Até o último pingo de sangue encharcar minhas roupas brancas.

     Devo estar a uns cinco centímetros do chão. Vendaram-me e agora pertenço às minhas memórias. Ouço passos gelados no chão e sei que um deles está se aproximando. Uma delas, aliás: O salto é alto e sei reconhecer esse cheiro de longe. Um perfume básico, forte e inesquecível como perder a virgindade. Ela saberia bem do que estou falando enquanto penso isso, e o couro do chicote alisa a pele do meu braço descoberto como a língua de Lúcifer.
     A regra é simples como não trair a confiança de alguém: Ela me bate e eu imagino o porquê. Não é ela quem inflige a punição. Sou eu. Eu, que quero exorcizar todos esses ridículos fantasmas que me assombram pelas feridas que se abrirão. Ela é só uma máquina, uma máquina que conheço muito bem, uma máquina que já fiz sangrar e chorar e gemer e gargalhar, mas só uma máquina.
     Posso imaginar os cabelos negros ondulados caindo como serpentes de Medusa sobre seu rosto; os dentes de Cro-Magnon talvez cerrados e impecavelmente brancos — além das escleras, o único lampejo de cor clara na pele marrom. Os olhos são expressivos e praticamente saltam das serpentes e lambem meu corpo com uma saliva de ácido clorídrico. É como se eu estivesse realmente sendo cortejado por um demônio, sentindo todos os fluidos, gosmas e texturas asquerosas arranhando e violando minha pele. Eu me deixo dominar, então.

     E vem a primeira chicotada.
     Na costela, delícia! Não esboço dor, só imagino o porquê dela. Essa é a regra, e talvez ouço uma risada abafada que só ela poderia me dar. Ninguém esquece uma boa dose de vingança.
     A segunda chicotada é no mesmo lugar e penso que isso é sacanagem comigo. Minha pele se rompe com a colisão, e dela sai o viscoso líquido vermelho cheio de anticorpos e oxigênio. Ouço algo cair no chão logo abaixo de meus pés e fazer um estalido altamente familiar, como algo que eu tivesse acabado de ouvir.
     E é quando sinto duas mãos envolvendo minhas coxas com força. Foi o chicote que caiu das mãos dela, e a sensação seguinte é uma doentia língua se alimentando do sangue que sai timidamente pela ferida. Consigo imaginá-la como algo muito mais monstruoso do que o primariamente concebido e, ao mesmo tempo, projeto em minha mente a mulher da roldana borbulhando de ódio com a mesma introspecção de meu sangue. Bem, talvez porque já fazia muito tempo que essa língua não me tocava, e ela não queria que isso pudesse acontecer de novo.
     As mãos que apertam as coxas sobem até minhas nádegas. Agarram-nas com prontidão e a língua fica cada vez mais leve e pontuda em minha costela escarada. Leve, tranquila, até desaparecer junto das mãos. Ela bebeu meus erros, então, e não perde tempo para agarrar o chicote do chão e acariciar-me com ele. A língua de Lúcifer, mais uma vez.
     Penso em quantos erros ainda devo pagar.
     Quantas chicotadas ainda devo levar.
     E, principalmente, se o último círculo do Inferno é punição o bastante para mim.