4 de dezembro de 2012

Abutres famintos e loucura às cegas

Siga de onde tudo parou: Ratos fardados e gangues de rua

Imagem original: http://goo.gl/RAELj

Duas espingardas se chocam: A minha e a de Senaga. Ele atacou e eu só pude defender em puro reflexo. Eu poderia contar em uma calculadora científica a quantidade de alternativas que eu tinha antes de torcer o pulso dele, mas eu, feito rato, escolhi a primeira.
     A pior.
     Estamos isolados do resto da manifestação, travando golpes de espingarda em mútuo esforço enquanto os universitários à nossa volta esqueceram o motivo pelo qual haviam pintado os rostos e enchido as estações de metrô pelo horário do almoço. Com o pouco rabo de olho que eu posso reservar durante as investidas animalescas de Senaga, consigo ver a surpresa expressa sem demora nos pares de olhos e nas bocas entreabertas dos jovens que não haviam trabalhado tal possibilidade.
     E, cacete!, mais uma vez Senaga tenta me acertar, dessa vez à altura da têmpora. Flexiono meus joelhos e estanco o ataque com minha espingarda, simplesmente cansado dessa batalhinha campal que estamos travando. Dane-se, sou rato e escolho a pior das alternativas, então me lanço de braços abertos no quadril dele, derrubando-o e imobilizando a metade inferior de seu corpo. Já conseguia sentir suas pernas se debatendo feito perninhas de barata sob mim.
     Sinto a espingarda pulsar em minha mão nos segundos em que Senaga está sob o efeito da surpresa. Existe certa súplica em seus olhos apertados, um pedido de misericórdia de quem sabe que isso tudo é errado. E durante esses segundos eu sei, eu tenho certeza absoluta de que ele me atacaria logo após a impressão rápida da derrubada for embora. Só que não há como simplesmente dizer "chega"; nunca há como fazer isso. Não foram os elefantes nem os golfinhos quem inventaram a burocracia, os contratos, os empregos mal remunerados. Fomos nós, homens, e nós gostamos de ter razão no que fizemos, estamos fazendo e faremos. Tudo tem que estar escrito e um erro de conduta é imperdoável. Já errei, não é? Vir para essa guerra despropositada foi o primeiro erro. Já não consigo me perdoar, então o que vier daqui para frente é lucro.
     Agarro a espingarda com as duas mãos e sua coronha atinge o pescoço de Senaga. Ele engasga e tosse saliva em seu capacete, que retiro após desafivelar com uma das mãos. Consigo ver o rosto oriental livre e cada segundo mais suplicante e pedindo arrego. Não há como parar, então penso em todos os filhos desvirtuados de policiais enquanto arranco um pedaço de sua pele amarela com uma coronhada. Com o impacto, a cabeça do soldado ricocheteia no chão e volta ao grau zero, agora de olhos fechados mais condoídos ainda.
     Ouço urros à minha volta: Os jovens parecem estar do meu lado da história, achando que sou um universitário à paisana ou um justiceiro de histórias em quadrinhos. Penso em cada vaga de faculdade pública comprada por playboys vagabundos e a coronha atinge a outra bochecha de Senaga. É como se ele fosse a injustiça sob minhas mãos, e eu estivesse erradicando o universo de um mal. Talvez eu esteja simplesmente erradicando meu próprio mal, mas ainda não há razão para interromper tudo. Não há, pelo menos, até Senaga abrir os olhos mais uma vez, largar a espingarda e erguer seu tronco em minha direção, segurando meus ombros com o desespero de um exército inteiro.
     — Não, cara — ele sufoca enquanto o sangue que mela seus lábios acaba respingando em meu próprio rosto — Não faz isso.
     Meu pai costumava me espancar à base da toalha molhada quando eu o desobedecia. Me deitava nu na cama do quarto, a porta trancada, a janela fechada e a lâmpada apagava, e só ele conseguia me achar naquele breu. "Toalha molhada porque não deixa marca", ele dizia enquanto atingia minha bunda, meu braço, minhas costas. Havia dias onde meu pai estava excepcionalmente puto, como quando surrupiei uma lata de cerveja da geladeira aos treze anos, e ele estapeava meu rosto naquela treva. Deixava marcas e dane-se, eu ia para a escola com cinco dedos vermelhos em alto-relevo na cara. Sempre pensei que tudo acontecia no escuro para que eu sentisse mais medo ainda — até hoje tenho problemas para dormir sem alguma luz acesa —, mas um dia descobri que não era assim.
Em um dos dias excepcionais, num inverno frio mas ensolarado, eu me agarrava à gola rulê da blusa do meu pai implorando por clemência enquanto ele enchia a mão direita em minha bochecha esquerda. Eu já estava sentindo as lágrimas borbotarem ao lado de algum líquido viscoso do nariz (ranho ou sangue, nunca soube) quando minha mãe abriu a porta do quarto, apreensiva demais com meus gritos. Descuido de meu pai, que sempre trancava. Foi o bastante para eu entender que ele simplesmente não queria me ver naquela horrenda situação de espancado. Quando finalmente percebeu o estrago que fazia em meu rosto, o desespero salivando entre meus dentes e todas as secreções que dançavam em meu rosto durante a punição, ele ficou aterrorizado o bastante para nunca mais me castigar com agressões.
     É minha vez de ver onde minha loucura às cegas estava chegando. A luz do Sol bate forte na avenida, contudo uma neblina de incompreensão esbatia qualquer palmo à minha frente. Só quando o rosto redondo manchado de Senaga saltou diante de mim que pude entender o que acontecia.
     Levanto-me horrorizado do corpo dele. Querendo esconder meu rosto dentro do asfalto, querendo me enterrar junto das árvores do parque Trianon, querendo explodir os alicerces do MASP para que ele desabe sobre mim. Querendo morrer, afinal a linha que separa a justiça da injustiça é tão fina, tão irrisória, que é parte do destino da Humanidade nunca estar integralmente do lado certo da História.
     É quando os universitários à minha volta tomam meu lugar sobre Senaga, munidos de pedras, tábuas e bastões. Mesmo os desarmados se atracam a ele, desferindo joelhadas, socos e pontapés. Todos parecem querer arrancar um pedaço do soldado, sufocando qualquer palavra de paz que ele pudesse pronunciar com berros e impropérios desconexos. Um bando de abutres sobre a carniça de um cervo, atacando-o como bestas tão ferozes quanto eu pensei que nós, policiais, éramos nesse conflito.
     É, ninguém está do lado certo dessa guerra.
     Ninguém se salva, e aponto minha espingarda para a cabeça de um dos jovens.

Continua.