6 de abril de 2013

Cinquenta e seis


A mulher grita para os filhos distantes, pontos magros perambulando pelos carros parados à luz vermelha do semáforo. Sua barriga inchada espera mais um filho, o sexto. Tem menos de trinta anos, mas a boca banguela e as linhas de expressão fundas como cânions a fazem ter mil, dez mil, uma múmia grávida.
     Estende o dedo ossudo para as crianças igualmente mumificadas pela miséria.
     — Vai, vai, vai!
     É só o que sabe dizer a eles. Nem lembra seus nomes, mas sabem que no fim do dia garantem, com algumas moedas e poucas cédulas, o crack da madrugada, aquele que a mantém acordada. Viva. Acordada e viva para produzir mais filhos que recolham mais dinheiro de mãos desconfortáveis. E todo dia é assim, será assim, a criança sendo gerada na barriga apodrecida da mulher nascendo doente, com seis dedos, sem qualquer imunidade. Morrendo em uma semana, o corpinho desnutrido como o de um bonequinho de palitos. Sem nutrientes, só o crack correndo pelas veias que eram para ser novas, virgens. Tudo se acaba antes de começar nessas imediações.
     É a Cracolândia, ou pelo menos próximo dela. Essa mesma mulher está em primeiro plano enquanto, ao fundo, outras múmias se arrastam pelas calçadas vomitando lixo na cidade. O pai da próxima criança, a provável natimorta, é um deles que deita com roupas esfarrapadas num chão que os atrai com voracidade, como que imantado. Ali, todos os dedos são ossudos e todas as crianças são natimortas. Mesmo que resistam aos primeiros meses, sua própria existência já é ausência de vida. Vivem para esmolar, para socar os vidros fechados e estender a mão para os abertos. As moedas tilintam escassas no punho entreaberto, o vidro aberto quase se arrepende do ato.
     Aprendem os malabares, a limpeza de para-brisas, e nunca aprenderão quanto é sete vezes oito. A vida resumida em movimentos escassos como as moedas: Soca, limpa, estende, malabariza e tudo em ordens diferentes e avessas. Em esporádico, dentes são cuspidos das gengivas podres desses moleques, dessas garotas. E dói, tudo dói, a pele dura e quebradiça como madeira dói mas o dedo ossudo está ali para mandar o trabalho seguir, mesmo que não haja comida à noite. Mesmo que acordem e tudo que os cinco filhos tenham para comer seja pão puro sem água. O trabalho segue.
     Todas as crianças são natimortas, sujas e jogadas no fosso que é o inferno criado pela própria decadência do homem. A visão embaça pelas lágrimas que não podem cair; a língua resseca pela comida que não vem. O fomento ao vício continua a cada tapa que as acorda pela manhã. Elas, que dormem em trapos de colchões rasgados em prédios invadidos. Nada as pertence, nem mesmo a própria vida que a Morte já alugou. Tudo que têm, por cinco ou dez minutos, é um naco de pão. Um pão tão malévolo que até o diabo nega tê-lo amassado. A unha suja na ponta do dedo ossudo aponta para o vermelho no semáforo mais uma vez.
     — Vai, vai, vai!
     É só o que sabe dizer a eles. As crianças nunca mais ouvirão outra palavra a não ser a de ordem. O trabalho segue.