7 de agosto de 2013

Recusa

Original: http://goo.gl/6Go7GT

i.

    Você veio e se sentou ao meu lado naquela manhã. Viu que eu não comia há semanas e estendeu, descompromissada, o saquinho de batatas fritas à frente de meus olhos famintos. Sorri e recusei, por humildade imposta. Você insistiu e acabei pescando duas ou três.
    Demorei meses até poder voltar a comprar o lanche no intervalo da escola. Meus pais voltaram às atividades normais até Julieta nascer, com direito a uma promoção inesperada no escritório da minha velha e tudo mais. Despesas em dobro, salário em dobro. As coisas estavam caminhando.
    Enquanto não caminhavam, duas ou três batatas fritas para enganar o estômago e satisfazer minha fome de viver.
    É fácil se apaixonar na quarta série, e foi o que aconteceu.

ii.

    Acostumada a me oferecer as coisas, você me ofereceu um beijo na noite de formatura. Oito anos nos separavam da semana onde nos aproximamos, com direito a três deles sem você na mesma escola, e naquele buffet todo decorado com motivos gregos eu sorri e recusei. Não por humildade, mas por nervosismo. Eu não havia experimentado coquetéis o bastante enquanto você já estava dançando descalça há horas de tão bêbada alegre.
    Você insistiu me puxando com as pontas de seus dedos suados de copos gelados. Acabei pescando dois ou três beijos, meu corpo contra o seu naquela coluna grega artificial.
    Meses depois, ajoelhei no meio daquela rua cheia de quiosquinhos hippies e te pedi em namoro. Finalmente podia oferecer algo, nem que fosse amor e alguns presentes que eu compraria com a mesada.
    Você, acostumada a dar, também soube receber.
    Foram três anos de muitas trocas.

iii.

    Largo o cigarro pela janela do Porsche (paguei caro demais por ele para chamá-lo de carro) enquanto essa garota lambe meu pescoço com risinhos falsos. Sua mão insiste em entrar em minha calça, e acendo mais um cigarro quando nos enfiamos em um beco qualquer e ela está ajoelhada à frente de minhas pernas. E me chupa enquanto chupo o cigarro. Não há sincronia.
    Sei contar minha vida pelo diploma pendurado na parede do meu quarto e meu Porsche. Pelo cargo de vice-presidente na empresa do meu pai e pelas viagens a trabalho que faço todo mês. Raramente me oferecem algo que não poderia ter com um cheque assinado em mãos.
    Se isso é bom? Movo dois dedos e pago uma bebida para que eu tenha um boquete em um beco.
    Se isso é bom? Deixo isso em suas mãos.
    Ou nas mãos dessa vadiazinha. E em sua boca.

iv.

    Hoje encontro seu corpo vestido por trapos nesse quarto de motel. Você morde os lábios forçosamente, tenta me seduzir e sabe que estou atônito demais para isso. Afrouxo a gravata mas não a retiro. Sento ao seu lado na cama e abro a carteira, dando cinco notas fresquinhas de cem. "É um presente, não vou te fazer nada", digo sôfrego após tanto tempo de uma confiança que mandei fazer em um alfaiate francês.
    Alguém diria que o mundo dá voltas. Mas isso, na verdade, sabemos, é o curso natural da ironia humana. É a ironia que me faz notar que, mesmo após tanto tempo, não sei oferecer nada além de dinheiro. E você, que sabe, acaba por oferecer seu corpo para poder viver. Minha felicidade se resumiu em uma caneta assinando um papel listrado, e a sua se resumiu tanto que deixou de existir. (Sei que essas olheiras não são à toa.)
    Por que terminamos aquilo lá de trás? Seria epifania estúpida dizer que foi porque não soube me oferecer, mas é a verdade.
    A verdade é uma epifania estúpida, tão óbvia que frustra.
    Eu já não sei o valor de nada, você tampouco.
    Mas eu nunca soube.