6 de março de 2012

A borboleta de Rorschach


Aquele mensageiro, de vinte anos (talvez menos, mas aparentava ser velho o bastante para tal), adentrou a Biblioteca onde eu me encontrava escrevendo pequenos poemas. Larguei a pena, meus cacheados cabelos foram soltos e me preparei para a mensagem.

Normalmente, uma mensagem para uma rainha se trata somente de situações sociais, como aniversários e casamentos. A rainha é a responsável pela diplomacia entre os reinos de modo sutil, afinal os Reis que são normalmente vistos apertando as mãos dos outros. Só que nada disso seria possível sem a presença das rainhas em todo tipo de evento, afinal o Rei sempre estava atarefado demais em guerras, construções e planos. Por exemplo, naquele momento meu Rei havia partido para um reino a oeste para atar os laços militares com ele, pois uma guerra se aproximava.

Entretanto, a carta era do próprio Rei.

A voz grave do mensageiro me lembrava da voz dele. E a carta, sendo desenrolada friamente por ele, não parecia nada boa.

"Querida rainha,

Primeiramente, saudações. Espero que esteja tudo tranquilo em nossas terras. Já se passou algum tempo desde que fui recebido em Licciardi com toda a hospitalidade possível, e tenho lido todos os relatórios mandados por você.
Todavia, não poderei atestar pessoalmente se está tudo bem quando eu chegar. Pois não mais voltarei a Ursini.”

Torci a cabeça com pouca convicção no que ouvia.

“Essa decisão nada tem a ver com as alianças militares que estou de fato fortalecendo. É exatamente o contrário da guerra, ou seja, o amor. Estou apaixonado, minha rainha. E me sinto impuro de ter qualquer contato direto com você mais uma vez.”
                                                                              
Parei de olhar para o mensageiro. As lágrimas que borbotavam já umedeciam meu vestido lilás. Que ele deu. Prometendo amor eterno.

“Espero que não me procure de modo algum, nem em seus pensamentos, em seus sonhos... eu não mereço isso. É um discurso tolo, esse de que o problema está em mim e não em você, mas não há muito a fazer. Ou até há, mas prefiro achar que não.”

Joguei todos os papéis, a caneta, a tinta, tudo no chão. Um pouco do preto espirrou no vestido, o que era só o começo das manchas que sujariam quase um decênio de minha vida.

“Não sei como você reagirá a tudo isso, mas não posso expressar um cento de meus sentimentos por uma carta. Por isso, que essa carta fique como um comunicado, e nada mais. Não haverá despedida. E assim acabo minha mensagem.”

Assim?
Com essa frieza?
Com essa falta de coração?

Como ele quer que eu o esqueça se não houve nenhum adeus?

(enquanto eu pensava isso, o mensageiro ia embora, afinal eu estava fazendo um sinal bem pouco educado para ele se retirar.)

Não queria ver meu rosto naquele momento, mas provavelmente era o retrato da vergonha. Meu rosto sempre avermelhava demais, minha pele sempre se comprimia demais, meus olhos sempre esbugalhavam demais. Teria ódio de me ver assim por causa de alguém que não merecia uma lágrima.
Rasguei os poemas, um a um, gritando, bufando e agindo como uma leoa faminta dilacerando um cervo. Queria me sentir dilacerando-o, mastigando-o... destruindo-o.

E o reino? Como o povo reagiria ao saber que não havia um Rei os governando? Como reagiria ao saber que eu, a Dama Submissa, tomaria o poder? O reino já estava abalado com a iminência de uma guerra, agora eu estava abalada pela iminência de outra guerra. Civil.

Não havia sobrado mais nada. Eu olhava pra janela, rasgando todos os livros dele daquela Biblioteca, e via só cinza. Via as cores escorrendo e se transformando em tinta preta, que sujava tudo. Qualquer construção, qualquer pessoa. Um reino preto-e-branco com manchas negras sem o menor padrão. À minha volta, tudo ficava desse mesmo modo. Até meu rosto, aposto, estava branco como se nunca houvesse sido pintado pela natureza.

Depois veio a visão embaçada. O pouco que via se transformou em telas brancas com borrões pretos, como um teste de Rorschach. Eu poderia ver o que quiser, desde uma singela borboleta com a docilidade para poucos amigos até um corpo morto, caído no chão e mergulhado em seu sangue. E eu via um corpo morto, acredite. Na verdade, vários corpos mortos. Tentei enxugar meus olhos e crer que o embaçamento era causado por lágrimas, mas não. Era tudo parte de uma consciência que não queria enxergar a tristeza com todas as suas nuances e silhuetas. Queria só imaginá-la, pensar por um momento que não é real.

Mas o sofrimento é real, sempre foi na história da raça humana. E não era diferente. Mas esse sentimento nunca me levaria à morte, como muitos podem pensar.

Sou obrigada a, em poucas horas, respirar fundo e falar para um reino inteiro que eu estou no comando. E eu hei de estar no comando. Eu hei de provar aos outros reinos que não sou nada submissa, que nunca estive pronta para ser alguém porque nunca tive essa oportunidade.

Mesmo que todo um reino, todo um exército, toda uma população... toda uma vida seja só uma mancha preta em uma tela branca. Onde eu vejo o que eu quiser.

Bem, hora de começar a ver a borboleta nessa mancha.

- para não dizer que nunca me inspirei nela.

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