18 de novembro de 2011

Sem fé

Conto inspirado em várias músicas do Faith No More.




Aquele homem entrou de novo no bar. Entrava todo dia, mas não era querido pelas pessoas, muito menos por mim. Ele me intrigava, na verdade. Era uma presença estranha na minha vida, não tinha paz no olhar.
Seus olhos transpiravam cafeína.
— Copo de quê? – Perguntei.
De tristeza. — Ele disse isso sério como sempre.
Peguei um uísque qualquer e despejei em um copo qualquer com uma quantidade qualquer de gelo. Entreguei-o com indiferença.
~

Bebericava o uísque sem muita firmeza quando peguei o barman olhando para mim por mais de um segundo completo. Tive certeza que ele já estava olhando para mim há algum tempo antes de flagrá-lo.
— O que é?
Você sabe.
Eu sei. E ele quer saber.
Fiz um sinal com o copo para que ele chegasse mais próximo. O bar estava na sua última meia hora de funcionamento, eu sabia que ele não recusaria esse momento, afinal o movimento era desprezível no local.
— Pristina. Esse é o nome dela.
Ex-mulher?
E filha.
E lá se foi mais um gole.

~

— Conheci Pristina há quatro anos. Ela tinha dezesseis.
Ele descrevia sua filha de um jeito pouco convencional. Dizia que quando a conheceu parecia um bebê saltitante. Era tão inocente quanto uma bala de morango.
Deu detalhes físicos pouco impressionantes. Corpo pouco desejável, rosto cheio de espinhas... Era só uma mulher.
— No entanto, toda essa composição física dela a fazia parecer ter uns vinte e poucos. Era uma moça quieta, mas adorava sorrir por qualquer motivo. Era até boba de tão inocente.
— Até aí, não vejo problema algum.
— Você sentou aqui para me ouvir, e não para falar, certo?

~

Por um momento, pensei em pedir desculpas. Mas já era tarde demais, deixei que ele se remoesse de ódio de mim. Tenho a arte de fazer inimigos.
Terminei o uísque e deslizei o copo pelo balcão, longe de mim. Queria qualquer coisa com muita cafeína. Talvez só muita cafeína fosse o bastante.
— Pristina e eu nos conhecemos no supermercado. Na noite seguinte, estávamos fazendo sexo na minha casa. Ela se mostrou muito fácil, fácil como uma manhã de...
— Domingo. Comparações estranhas, as suas.
Ele conhecia The Commodores e não perguntou por que diabos eu tinha feito sexo com a minha própria filha. Talvez ele fosse legal.
Ela engravidou. Gêmeos. Miguel e Alan. Continuamos juntos. As coisas iam melhores do que tínhamos planejado.
Pausa para cafeína. Levantei e logo agarrei uma lata do energético mais potente da geladeira. Abri sem o menor esforço e molhei a garganta com taurina.

~

Contou que um dia a mãe de Pristina ligou. A mãe dela era uma prostituta com quem o cara tinha passado algumas horas em um motel qualquer. Ela havia descoberto por fontes confiáveis que a vida dela finalmente estava boa, e havia ligado para pedir dinheiro.
— Fiquei sabendo disso alguns dias depois, já que fui eu que atendi e acabei conversando com ela sobre Pristina. Descobri que havia uma chance forte dela ser sangue do meu sangue, e acabei fazendo um exame de DNA às escondidas.
Ele disse ter confirmado a hipótese. Matou Pristina e os gêmeos. Um dia depois, outro corpo assassinado, dessa vez o da mãe de sua filha.
— Desci o cacete nela até todos os ossos se transformarem em massinha de modelar.
Gole de energético.
— Não acharam nenhuma evidência. Destruí os quatro corpos, não sobrou um órgão inteiro. Depois, juntei-os em uma sacola e incendiei-os.
Ele falava sem a menor vacilação na voz. As mãos se mantinham firmes e os olhos, longínquos, estavam pouco perturbados.
— Foi minha pequena vitória da vida. A única vez que me livrei de algo que me fizesse mal.

~

Minha barba pinicava meu rosto como nunca antes. Nunca antes havia falado sobre isso. Era como se a presença do maldito barman revistasse minha alma. Já não era mais engraçado falar.
— Hoje em dia vivo só por viver. Tudo está arruinado. A vida já não vale mais a pena para mim. Não há mais fé.
— É isso?
— É.
— Só isso?
— Como assim, “só”? Fodi e matei minha filha e você acha pouca desgraça?
— Acho. Sabe o que é a desgraça?
— O quê?
— Eu saber que não existo.
E, de repente, acordei.

~

O homem olhou para o lado e viu sua mulher encolhida na cama de inverno. Foi ao quarto e viu Pristina ainda no computador àquela hora da madrugada. Tomou consciência do pesadelo que acabara de ter.
Poucos dias depois, estuprou a filha, matou-a e linchou a esposa até a inconsciência por achar que ela era uma prostituta. Chorou o resto da tarde por um final feliz, e só achou um copo.
Um último copo qualquer com um uísque qualquer.
O último copo de tristeza.
Bebeu-o em um só gole. Depois, seu olhar ficou vazio, a barba pinicou e a pouca fé que tinha foi embora.
E se surpreendeu com o que era a desgraça.

Era não existir.

Era não ter fé.
(Então levante esse copo e vamos propor um brinde
pela coisa que mais te machuca.)

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