24 de fevereiro de 2011

A poesia de Adelaide





“A cada dia que passa, eu penso mais no nosso futuro.
Ia ser tão mara ficar do seu lado pra sempre, tipo, ia ser perfeito!
Ter a nossa própria casa, ter nossos trabalhos e nossos filhos.”

Já é a quinta vez que releio as cartas de Adelaide. Só hoje.
Faltam poucas horas para minha festa de aniversário, e não estou com vontade alguma de comemorar meu meio século de vida. Só consigo ver como recompensa do tempo passado essas rugas proeminentes ao redor dos olhos e na testa, além dos fios brancos que se escondem no meu cabelo e, claro, as folhas rabiscadas que Adelaide me escreveu na adolescência.


Quem não sente falta de um pouco de amor, não é mesmo?

Aos cinquenta anos começa a ficar inviável a vida boêmia, mesmo que garotas lindas de vinte anos ainda corram atrás de mim. Existe um momento na vida em que toda pessoa precisa sossegar o facho, casar e dormir antes da meia-noite todo dia. Sempre gostei dessa ideia, traz conforto e um sorriso bobo no rosto. Mas fica difícil cumprir tal tarefa sendo uma celebridade internacional cobiçada por qualquer máquina fotográfica ligada em um aeroporto.
Consegui encostar na terceira idade com uma vida digna de biografia, com muitos altos e baixos na minha vida pessoal e na de vocalista de banda de rock. Conheci lugares e pessoas inimagináveis, passei por situações incríveis, visitei quase cem países... a vida que qualquer um pediria a Deus. Faço dinheiro, tenho mulheres e viajo pelo mundo inteiro fazendo o que gosto. Mas hoje... bem, hoje nada disso está tendo importância. Nem as roupas caras, nem os Grammys, nem as fotos com Slash e Mike Patton...
Hoje penso se eu trocaria essa vida abençoada por uma vida mais módica ao lado da Adelaide. Dois anos de namoro que jogamos no lixo por causa de nossas ambições profissionais: Eu, que tinha uma mini-turnê pelo Centro-Sul do Brasil e ficaria dois meses tocando com o Portobello Club; ela, que ficaria seis meses estudando na Inglaterra para ser professora. Depois do longo beijo que demos no aeroporto, no dia de sua partida, nunca mais senti a maciez de seus lábios, o frescor de seu perfume e toda a poesia que se articulava na minha mente só de admirá-la.
Durante esses trinta e muitos anos só consegui ter acesso ao básico sobre a vida dela: Casou com um empresário escocês; ambos fundaram a ZooSisters, a ONG de proteção aos animais de rua que a Adelaide tanto queria fundar; é professora de História Inglesa na USP; tem uma filha que chama Luciana. Ela também deve saber do básico sobre mim pelos tablóides: Meus devaneios e noites com atrizes, minhas constantes mudanças de cor do cabelo e de vestuário... mas ela não deve saber que a música mais premiada do Portobello Club, “Tomorrow”, foi inspirada nela. Ela também não deve saber que nossa primeira foto juntos está em um modesto porta-retratos no criado-mudo do lado da minha cama. Queria que soubesse.
Eu poderia me aproximar dela muito facilmente, fazendo uma doação exageradamente grande para o ZooSisters e direcionando os holofotes para mim e para a fundadora da ONG. Poderia ainda revelar o segredo sobre “Tomorrow” e tantas outras canções inspiradas em seus olhos negros e seu modo de andar.
Poderia. Mas é melhor não.
Nós dois atingimos cinquenta anos, não temos mais idade para amores de adolescente.

Bip.

Ouço um barulho familiar. Largo as cartas de Adelaide, guardo-as no saquinho dourado onde ficam desde meus dezessete anos e...

Bip.

Sento na cama e pego o notebook. “Um novo e-mail”, ele acusa. Clico no balãozinho. De duas uma: Fãs ou gravadora. Os caras da banda sempre falam comigo por telefone.
O e-mail não tem título, mas foi mandado por um tal de “adelaide@zoosisters”... “.com”...

“50 anos, Rodrigo.

Isso é tudo o que eu sei agora. Depois de tanto tempo, me limitei a saber sua idade.
Eu não quero ser melosa — afinal, não nos falamos há tempo demais —, mas essa é provavelmente a última carta que escreverei para você, e eu precisava escrevê-la. Ficamos acreditando que nos encontraríamos em um futuro distante para termos uma família juntos, só que a vida foi malvada com a gente. Deveríamos ter criado nosso acaso e não esperá-lo agir. Mas tudo bem, acho que estamos felizes com a vida que levamos hoje em dia, né? (por favor, diz que sim)

Sabe, você foi uma das melhores pessoas que conheci na vida. Nunca pensei que iria conhecer alguém que tivesse coragem de gostar de mim antes de me conhecer direito. As pessoas sempre têm tantas dúvidas sobre qualquer um, mas você...
Você nunca duvidou de mim. Nem de nós.
Enfim, só mandei esse e-mail para te desejar muita paz, saúde, amor e sucesso com o Portobello Club. Você já tem tudo isso, é só manter esse pique. E queria que você continuasse sem duvidar de nós, pois você deve saber que ainda te amo. “E isso deve ser o suficiente pra te encontrar em qualquer lugar, mesmo que seja em outra vida.” (e é bom que você lembre desse trecho de uma das minhas cartas, senão te mato)
Então... até a próxima encarnação.

Beijos,
Adelaide Carvalho.”

Pego o celular. Digito o número da agência que promoverá o “evento” que será a comemoração dos meus cinquenta anos.

— Oi, vocês podem incluir mais um nome na lista? ... É... Adelaide Carvalho Sykes... Tudo bem... Vocês podem mandar o e-mail convidando? ... Okay, muito obrigado.

Aperto o botão vermelho, seco os olhos umedecidos com a manga de minha camiseta e me sinto com quinze anos de novo. Acendo uma vela e rezo para todos os santos possíveis para que ela possa vir na minha festa. Mesmo se não vier, tudo bem, afinal sei que um dia estarei junto com ela.
Mesmo assim, desculpe-me, “próxima encarnação”, mas eu quero a poesia de Adelaide mais uma vez nessa vida.
Pelo menos mais uma vez.




- Posfácio -

Eu sei que, para quem conhece um pouco sobre minha vida, esse conto é pessoal demais e não deveria ter sido escrito. Mas senti que tinha que escrevê-lo, afinal já se passaram duas semanas comigo sonhando com a pessoa que me inspirou a fazer “A poesia de Adelaide” e, para mim, isso acabou sendo um sinal para redigir o conto. Pode ser só uma engrenagem solta no meu inconsciente, mas isso não me impediu de vasculhar as cartas que ela me escrever ao longo dos nossos onze meses e meio de namoro para me inspirar.
Entretanto, pelo menos “A poesia” tem um final feliz. Não fica claro se Adelaide vai à festa — talvez eu faça uma continuação -, mas o coração dela e o de Rodrigo terminaram em paz.
Queria que todas as histórias tivessem finais assim.

Felizes.
@mrpitanga

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