10 de março de 2011

A lenda das Monções




“Ainda nos deliciamos com as antigas histórias (...) Sentimos seu antigo poder ecoar profundamente em nós, enquanto nossa consciência fica repetindo ‘É só uma história’.” (Paul Levitz)


O homem franzino e desastrado se aproximou da porta de carvalho do antiquário. Abriu-a com o maior receio que já sentira na vida, esperando que qualquer bicho peçonhento picasse sua panturrilha. Entretanto, a escura loja era aparentemente dócil como um filhote de cachorro. Atrás do balcão, um negro gigante olhava para ele, esperando sua aproximação com um sorriso torto no rosto.

Por fim, o pequeno homem — mais pequeno ainda se comparado à muralha negra à sua frente — encostou suas mãos no balcão e esboçou um singelo “oi” com uma delas.
— Oi — O negro respondeu com uma voz cavernosa, que amedrontaria qualquer guerreiro espartano. O rapaz estremeceu, mas controlou a voz para continuar o diálogo.
— É... uma pessoa me mandou o endereço daqui para que eu...
— Você é o ator que não consegue mais se apresentar?
Ele assentiu com a cabeça raspada, impressionado com o corte na conversa. Entretanto, o negro não deixou recobrar o fôlego.
— O seu amigo me ligou falando o problema que você tem, humano. Por favor, sente-se.
A muralha apontou para um banco de madeira para onde o rapaz foi sem hesitar. Olhou-o de cima a baixo e pigarreou para começar a conversa.
— Seu amigo me disse que você é um ator consagrado nos teatros aqui do leste, certo?
— Sim.
— E que você iria entrar em cartaz com uma adaptação de “O Homem Invisível”, de H. G. Wells, certo?
— Sim.
— E que você simplesmente não conseguiu atuar na primeira noite pois caiu em uma profunda depressão, certo?
— Sim.
— E que você não saiu de casa até anteontem, certo?
— Sim. Olha, você pode ir direto ao ponto? Eu...
— Eu que faço as perguntas aqui, certo?
— Está bem — O rapaz disse, congelado de medo.
— Pois bem. O que aconteceu antes da apresentação?
— Acho que nada de importante... arrumei minha casa, encontrei alguns amigos, bebi cerveja...
— Depois da cerveja.
— Espera, se você sabe o que eu preciso falar, por que você mesmo não fala?
— É tão difícil para você me obedecer?
O jovem revirou os olhos e analisou os músculos proeminentes do negro que poderiam esmigalhá-lo se tivesse alguma oportunidade. No entanto, estava com mais medo do seu modo de falar do que de sua massa muscular. Ele falava com a calma de um eremita e não agia como um antiquário de camiseta florida. Ele era indecifrável.

— Posso continuar ou você vai me cortar de novo?
— Vá.
— O que aconteceu depois da cerveja?
— Bem, eu estava com meus amigos nas mesas de fora do bar quando um vento veio e quase levou todas as mesas...
— É isso.
— O quê, o vento?
— Isso não foi um vento — O negro parou, como se quisesse dar um suspense inútil à conversa. Abaixou o tom de voz e disse: — Foi uma Monção.
— Uma o quê?
— Monção.
— Ah sim, aqueles ventos que...
— Não, humano. Nada disso. Nem tente arriscar algo porque você não sabe.
Com as sobrancelhas levantadas, o rapaz se indagou o por quê do homem o chamar de “humano”, afinal ele bem parecia humano também. Um humano aterrorizante e enigmático, mas ainda um humano.
— Há milhares de anos antes do mundo como conhecemos, a palavra “monção” era motivo de desespero para a maioria das pessoas — O antiquário falava com um tom profético, usando muitos gestos para o que expressava — No entanto, ela foi perdendo seu poder com o passar do tempo.
— Os ventos, humano, não são só deslocamentos de ar. Eles são provocados por alguém; alguém empurra esse ar. Normalmente são espíritos bons que foram designados para essa função, e o mundo funciona como deveria funcionar. Mas, às vezes, esses ventos que transitam por todos os mundos e dimensões, movimentam outros espíritos; espíritos malvados ou perdidos que usam o ar para esgueirarem-se pelas realidades. Esses espíritos, na sua maioria, circulam com os ventos e não causam mal algum, mas ainda existem exceções.
— Alguns espíritos resolvem controlar o ar por conta própria. Eles sopram ventos muito fortes e atrapalham o curso normal dos sentimentos e ações humanas. Essas são as Monções.
— Então você quer dizer que aquele vento no bar...
— Sim — A muralha confirmou, estalando o pescoço — Os egípcios foram os primeiros a escrever e até estudar as Monções. Em seus documentos constava um jeito de aprisionar esses espíritos maus.
— E... você sabe qual é o jeito?
— O que você acha que são essas garrafas?
O antiquário apontou para as infindáveis prateleiras que davam voltas no estabelecimento. Nelas haviam garrafas, potes e ânforas de todas as cores e tamanhos, com um líquido levemente esverdeado dentro de cada uma. O ator fracassado ousou em pegar uma e analisá-la de perto. Viu que havia um pequeno pedaço de papel boiando no líquido.
— Com o passar do tempo — O negro continuou, sabendo que o rapaz estava mais interessado do que nunca — Muitos espíritos foram aprisionados e a lenda foi perdendo sua força. Hoje em dia são poucos os espíritos que se aventuram pelas Monções, e você teve o azar de ser atingido por uma.
— Como... como você conseguiu tantos? — O rapaz ainda olhava para o mundo de espíritos enjaulados em frascos tão frágeis. Pensava como uma dessas almas presas em garrafas puderam causar uma crise de depressão tão grande que ele foi obrigado a tomar calmantes por conta própria para dormir quatro horas por dia.
— O meu dono comprou esses frascos do mundo todo, humano. Aqui é um dos únicos lugares da Terra que sabem da existência das Monções.
— Seu... dono?
— Por que você acha que te chamo de humano?

O negro puxou um cantil do bolso e o deixou no balcão.
— Eu estava nesse cantil até dois anos atrás. Fui a primeira alma perdida capturada pelo meu dono. Eu era só um garoto de onze anos quando fui morto com minha família inteira no Vietnã. Desde então minha alma vagava pelos mundos procurando qualquer coisa que eu pudesse fazer, até achar o ofício dos ventos. No entanto, acabei me corrompendo pelas forças do mal e me tornando um criador de Monções. Meu dono foi atingido por uma delas e me aprisionou nesse cantil enquanto fazia uma travessia pelo deserto do Atacama.
— Puxa vida... — O rapaz admirava o negro monstruoso e não o imaginava sendo uma criança amarela de olhos puxados caída com balas americanas no peito. Mas a história ainda não havia acabado.
— Desde então meu dono resolveu caçar essas Monções mundo afora, até que teve um infarto fulminante enquanto tragava um cigarro em algum beco de Nápoles e caiu morto. Um mendigo que encontrou-o abriu esse cantil, pensando que haveria água, mas ele acabou me libertando. Assim, resolvi continuar o nobre trabalho do meu dono e assumi essa forma.
— Caramba...
— Eu sei que você está impressionado, mas não é isso que quer ouvir — O antiquário buscou uma garrafa de refrigerante vazia em uma caixa e tirou uma rolha de camurça de uma gaveta empoeirada — Segure, humano. O espírito que estava te amaldiçoando já deve ter ido embora, mas provavelmente voltará para uma segunda rodada de brincadeiras. Se o vento começar a ficar muito forte perto de você, encha essa garrafa com água até a metade e jogue esse papelzinho aqui dentro dela — A muralha tirou de outro bolso um pequeno papel com os dizeres "debelatum est" — "Terminou a guerra". A água começará a ficar turva e por fim ficará nesse tom esmeralda. Isso quer dizer que o espírito finalmente se acalmou na garrafa. Essas palavras são para que eles se sintam finalmente em paz.
Quando o negro terminou de falar, o rapaz estava boquiaberto e trêmulo. Guardou tudo em sua pequena mochila, disse um "obrigado" apavorado e se dirigia para a porta, mas quando tocou a maçaneta o antiquário o chamou com sua voz de trovão.
— Se conseguir aprisioná-lo, traga a garrafa aqui que eu a compro, certo?
— ...Sim.
O pequeno homem saiu do local atordoado. Não sabia se poderia acreditar em tudo o que ouviu em tão pouco tempo. Sentia-se atingido por uma onda e levado para o meio do oceano, perdido nas águas sem lei e sem saber o que fazer. "Acreditar nisso", ele refletia, "seria como acreditar em Papai Noel". Só que ele não tinha oura opção senão julgar o que os psicólogos chamavam de "transtorno bipolar" ou "excesso de estresse" como um espírito brincando com sua sanidade.

Ele sorriu e partiu correndo para sua casa arrumada, feliz por saber que nem toda a verdade se esconde em livros, e que muitas verdades nem deveriam estar neles.

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'Bas noite, pessoar.

Eu sei que esse texto está horrível, mas é o que tem para hoje. Provavelmente não postarei tão frequentemente por dois fatores: 1. Não consigo organizar minhas ideias e 2. Preciso focar no meu livro, "Céu, Inferno e Liberdade". Ando muito insatisfeito com os contos que escrevo pra cá (vocês não têm NOÇÃO de quantos eu já rasguei. Só esse das Monções reescrevi umas três vezes, e ainda me sai esse lixo), então acho melhor me concentrar no meu grande projeto.
Isso não quer dizer que eu não vá mais postar aqui. Eu vou tentar amadurecer as ideias, continuar a saga de Zara e dar um desfecho para a poesia de Adelaide, mas realmente está difícil para escrever.
Enquanto isso vocês podem ficar com os textos excelentes do Victor, do Barney e do Dereck (falando nisso, bem-vindo ao time!).
Sigam o @heavenswillburn e divulguem o blog para tudo e todos. Quando eu finalmente gostar do meu livro eu volto aqui.

Bye!

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