7 de junho de 2012

Dedicado a mim



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Se eu pudesse morrer de tanto me embebedar, já estaria na terceira vida”, escrevi com meu pálido sangue que mais parecia catchup vagabundo de barraquinha de hot-dog.
É difícil manter um sangue saudável quando você o dilui em álcool.
Essa frase foi escrita na parede, junta de várias outras pequenas pérolas da inutilidade. Há uns dois anos tem sido assim: Goles de rum, faca na mão e corte na outra. Um dia estava tão embriagado que arranquei uma falange do dedo médio. No outro dia, bebi mais ainda e arranquei uma falange do dedo anelar.
Hoje em dia estou constantemente tentando lançar teias pela janela por causa dessa mão deformada.

E há um engano em achar que esse é o fim da história. Se essa história fosse um livro, estaríamos naquela página com dizeres no rodapé em uma fonte de computador que deveria parecer parece escrita à mão que diz “Dedicado a alguém”.
E a quem eu dedicaria esse livro?
A mim.
Dedicado a mim”.

Faço uma ode à minha infância regada a jujubas e pés-de-moleque e à minha adolescência obesa mórbida. Aos meus cinco anos de vida e Scooby-Doo na televisão o dia todo e aos meus quinze anos e nenhuma consciência social na cabeça. À empregada-babá que cuidou de mim até meus sete anos e meu professor de boxe que me estuprou aos doze.
Uma vida digna, afinal. Não posso negar que essa vida movimentada é bem melhor que a vida insípida de muita gente. Por isso, um brinde ao passado!

O sangue continua a jorrar pelo corte no dedo. Minha capacidade de coagulação foi reduzida a níveis negativos, e a finura do sangue o faz se espalhar mais rápido ainda pela escrivaninha que antes servia de fato para escrever, e não para apoiar garrafas vazias e pratos mal comidos de lasanha congelada.

Mais um brinde pela operação de redução de estômago que me faz comer uma ervilha e me sentir estufado, e pela ansiedade causada pela depressão que me faz querer comer javalis assados inteiros. Por todas as vezes que pintei meu banheiro com vômito de bebida, e por todas as vezes que foi de comida.
Por todas as vezes, também, que foi com vômito de outros.

Levantei mais um copo de rum para o alto, brindando meu caos. O rum escorrendo pela minha mão magra e fodida congela minha alma. Copo ao alto, brindando meu desemprego de mais de cinco anos, meu prêmio na loteria que gastei quase que inteiramente com um estoque de bebidas em casa. Meus amigos que estão muito melhor longe de mim, minha família que está mais coesa sem mim na árvore genealógica.
Brindando a parte boa que havia em mim e resolveu fazer as malas, partindo para Nárnia ou se teletransportando para Marte.

Algum filho da puta deve estar por aí gritando “essa viadagem aí é por causa de mulher”. E é mesmo, algum problema? Coração remendado não bate direito, amigo.
Se eu tirasse meu coração e o desse para uma universidade estudá-lo, eles se surpreenderiam com a aparência dele. Amarrado com fios de arame e remendado com fotografias velhas, o sangue bombeado escapa por vãos e rachaduras, como uma caixa d’água de madeira carcomida em seus momentos finais.
Estou nos momentos finais, e esse é só o começo da história.

E quem se importa além de mim?
Fiz com que desistissem de mim. Transformar amor em ódio é tão fácil quanto mudar uma televisão de canal. E, subitamente, minha vida estava mudada.
Expressões novas surgiram em meu dicionário: Ódio-próprio, primeiro ódio, ódio à primeira vista.
A novela começou a se chamar Ódio, Eterno Ódio.
A música do Nando Reis, em um piscar de olhos, intitulava-se Pra Você Guardei o Ódio.

Se eu resolvesse transformar amor em rum, teria o mesmo significado.
Rum, Eterno Rum. Para mim faz todo o sentido.

Sou o Jesus Cristo do ressentimento, transformando amor em rum.
Praticando o milagre da multiplicação da raiva.
Curando o leproso matando-o.
Sendo crucificado por mim mesmo, lavando minhas mãos com meu próprio sangue.

Ressuscitando? Talvez. Só morrendo para saber.


6 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Que máximo, cara!
Muito bom.

V. disse...

Profundo, intenso, forte...
Maravilhoso!!
Parabéns pelo excelente texto.

Deh disse...

já disse que amo seus textos?

Alaor Rocha disse...

Muuuuito obrigado, galera!
Não, não falou, Deh! HUHAEUEHAUAEH Thanks anyway!

Paula Munhoz disse...

Muito bom! Muito bom, meesmo! :)