20 de fevereiro de 2012

Crônica



Todo dia é a mesma coisa.
Sento na minha poltrona, tento achar a posição mais confortável possível (para eu não me preocupar com ela depois) e solto o ar. Inspiro fundo, expiro com precisão. Duas, três, quatro vezes, até eu sentir que estava engolindo oxigênio e não gordura humana.

- Todo esse processo é só para que eu me sinta mais leve e relaxado. Isso não é nem metade da Missa.

Relembro o ocorrido. O que foi dessa vez? Um sonho? Um esbarrão na rua? Uma fofoca?
(Tempo para pensar.)
Uma foto.

Eu devia ter uns doze anos naquela foto. Nem pelo na cara eu tinha. Era uma festa de aniversário de uma colega de classe minha lá do Ensino Fundamental. Ela resolveu digitalizar a foto e colocar em suas redes sociais com todo aquele discurso Shakesperiano de saudades, compartilhado por outros ex-conhecidos meus. Para eles era só nostalgia, aquele pensamento de “bons tempos que não voltam mais” salpicado com folhas de falsidade e algumas gotas de “reunião na casa de alguém para lembrar os velhos tempos”.

Agora começa o tratamento.

Belisco minha barriga com força. Tento desviar qualquer impulso nervoso para aqueles milímetros de pele sendo torcidos e espremidos pelos meus dedos. Enquanto isso, lembranças calmamente rastejam até algum orifício descoberto em meu cérebro aonde possam entrar.

- Volta e meia há um buraco no cérebro por onde entra sujeira, poeira, um pouco de lágrimas e lembranças que não entrariam amigavelmente nele.

Minha respiração está acelerada de novo. As lembranças tomam conta de mim e no espelho à minha distante direita estou eu, sem pelo na cara e com um sorriso bonachão. O uniforme da escola veste meu corpo ainda sem nenhuma escoriação do tempo. Eu parecia feliz ali, mas essa visão tremulava enquanto os impulsos nervosos iam para a dor.
Em pequenos flashes, amigos e amigas daqueles meus doze anos surgiam no espelho, me abraçando, jogando bola comigo...
Pego o canivete no meu bolso. Posiciono a pequena lâmina na palma da minha mão, um lugar já calejado pelo tratamento. E começo a pressionar.
O espelho me mostra com dezesseis anos, com minha primeira namorada. Mostrava todos os momentos bons, ruins... o término, a volta, o segundo término, o bis... até rompermos definitivamente depois dela ser assassinada por três ou quatro moleques de rua com facas butterfly.
O sangue começa a molhar minha mão. As lembranças invadem meu cérebro como uma larva invade uma maçã.
O reflexo é cada vez mais nítido naquele espelho de corpo inteiro. Vinte anos, todas as garotas promíscuas com quem transei. Vinte e um, vestindo a beca para a colação de grau de História. Vinte e seis, casando com o amor da minha vida. Vinte e oito, decidindo se o nome da filha será Joana ou Rafaela.
E minha mão... ah, minha mão... Ela se torna a mão de Jesus. Crucificado. Trazendo a danação à minha alma banhada em sangue impuro.
O tratamento não funciona. A dor já não existe. As lembranças são tão vívidas que parecem me tocar. Elas andam para frente, encontram comigo, baforam em meu rosto suado. Os sessenta anos já estão sentados comigo, lixando as unhas enquanto eu tremo na poltrona quase serrando meus ossos.
Então, antes que meu cérebro apodreça, enfio o canivete em minha coxa magra. E sinto dor. E as criaturas que roçavam minha pele começam a se recolher naquele espelho. E em pouco tempo... estou só de novo.

Olho minha mão cortada. Vejo o sangue ainda sair fervente da abertura. Estanco com alguns bons centímetros de gaze. Deixo a coxa sangrar, quero continuar sentindo essa dor. Todos os tratamentos e remédios tinham pouco efeito em mim, aquilo era o melhor para esquecer a enfermidade.

Em algum dia do ano retrasado visitei um templo budista, onde um monge, depois de ouvir muito sobre minha vida e ver metade da água do meu corpo ser expelida em lágrimas, finalmente diagnosticou minha doença crônica. O que me fazia sofrer, o que me fazia querer o suicídio mesmo depois de uma história como a de qualquer um que se denomine ser humano.

- O que, às vezes penso, não é meu caso.

Ele esfregou as mãos uma na outra, e com uma seriedade irritante, disse uma palavra. Uma só palavra que eu negava a cada dia que passava, acendendo velas e queimando fotografias. Como aquela doença que sabe que tem, mas quer negar, achar que é placebo, coisa da cabeça.
O problema é quando essa coisa passa de uma cabeça para outra. Aí ela se torna inegável.

Inegável como o Passado.

P.S.: “Passado” com letra maiúscula, mesmo. Muitas vezes ele tem mais poder e vida do que eu, então nada mais justo.

P.P.S.: E nomes próprios são bons para termos certeza do que vamos odiar. Ou de quem, nunca se sabe. O ódio está no ar, é só respirar para sentir.

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Poxa vida, gente! Esqueci de avisar:
Dia 28 de Abril, um sábado qualquer, haverá o lançamento do livro Equinócios de Amor, pela editora Alcantis, uma antologia de catorze contos sobre... bem, vocês já entenderam.
E adivinha quem tá lá? Quem? Quem?
Bem, vocês já entenderam de novo.

Pois bem, olha que oportunidade incrível! :D
Bem, só tou avisando pra mor de vocês comprarem o livro, afinal é mais Mínima Ideia para vocês, e impressa!

É isso aí. Uma boa segunda-feira a todos!

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