3 de setembro de 2015

Criação.



Ele estava sentado já faziam algumas horas. Encarando as folhas pautadas, quase tão vazias quanto as promessas que ele fazia pra si mesmo a respeito de criar algo. Um padre em uma crise de fé, essa era sua metáfora. Sentia o sabor do desespero,  e pra quem ainda não definiu o desespero, ele mesmo já disse que gosto tem:
"... aquele gosto do último cigarro do maço, numa noite de domingo chuvoso. Aquele cigarro que te avisa que além da semana começar amanhã, você não vai fumar quando acordar... Primeiro vai ter que encarar o mundo. Vai precisar se vestir, ser civilizado, ouvir e ver pessoas, tudo isso sem o conforto daquela tragada abençoada ."
Ele estava com dores. Ferimentos antigos, aqueles trincados nos ossos, desses que avisam que o frio chegou mesmo antes da pele perceber. É engraçado como algumas coisas doem um pouquinho o tempo todo, mas do nada a tolerância da gente acaba né?? O copo ao lado direito da sua mão era o tinteiro improvisado, o da esquerda tinha um líquido denso vermelho vivo, cor de rubi, num escarlate brilhante, do tipo que se você olha rápido parece emitir luz própria. Deu a primeira golada, e disse meio que pra si mesmo:
- Passo horas sentado em metrôs, ônibus e trens. Fico vendo janelas com meus fones no ouvido e parece que entendi todos os grandes mistérios da vida. Sento aqui pra colocar qualquer coisa no papel e parece não entendi nem o que a professora do primário dizia... E agora tô aqui, falando sozinho. Não basta a coisa toda... Ainda preciso falar sozinho. Não adianta né?! Parece que a síntese de tudo isso não me cabe. Eu sei pensar, mas não sei dizer. Na próxima vida, quero ser de exatas...
As chamas da vela tremeram, como se uma das portas tivesse sido aberta e a corrente de ar frio tivesse entrado. Mas as portas estavam fechadas. Era quase como se tivesse sido só um bater de asas...
- Aí de você se fizer isso... - Disse uma voz que ele não escutava à tempos. Uma voz que vinha da cama atrás dele.
- Nem te vi chegar... Desculpa, mas eu achei que não viria mais.
- E eu não estar aqui é motivo pra blasfemar?! - Disse com voz de quem sorri. - Você realmente parece sem fé...
- Como eu disse... Achei que você não viria mais. - Ele se explicou como quem deve mais do que pode pagar. Ela riu. Ele bebeu. Ela disse:
- Eu não posso chegar enquanto você não admitir que precisa de mim.
A presença dela era tão nítida agora, tão palpável... que até o ambiente havia mudado. Tudo tinha um cheiro diferente quando ela chegava. Ele havia deixado as portas fechadas, mas isso era tolice, e tolice da maior. Ela sempre foi a dona das chaves, ele só tinha as copias. Além do mais, ela nunca precisou de portas. Gostava de atravessar paredes pra provar que tudo o que pra nós é sólido, pra ela eh nem sequer é físico. Ela sentou na cama e ficou exatamente atrás dele e da banqueta. Ele tentava se mover discretamente pra vê-la sem que ela visse mas ela parecia acompanhar as sombras feitas pelo fogo nas velas, se escondendo... Isso era irritante. Fazia tanto tempo que não conseguia por os olhos nela que quase não lembrava como e com o que se parecia. Sabia que era bela. Talvez não o tipo de bela que para o trânsito todo, mas se ele a visse pelas ruas e estivesse desprevenido bateria com o carro. Saber que a beleza estava ali, mesmo sem ver, teria de bastar, afinal, era isso ou então assumir toda a falta que ela fazia, toda a vontade que ele sentia de vê-la...
- Gosto do teu jeito de entrar sem bater.- Falou com o cigarro em mãos. -Parece que você estava aqui o tempo todo e só eu não vi.
- E você gosta de parecer que me ignora... Já me acostumei com isso.
Disse enquanto tirava o cigarro da boca dele. Jogou-o fora antes mesmo de dar tempo de protestar.
- Não é isso. Eu gosto de ser surpreendido. Se você berra aos 4 ventos que tá vindo, eu acho meio banal... Mas se você aparece onde e quando eu não espero, mas justamente quando estou te querendo, você me ajuda a acreditar na vida.
- E você espera que eu saiba que você me quer! Desde quando precisa de ajuda pra acreditar na vida! Você tá vivo...
- Já devia ter aprendido... Eu te quero aqui o tempo todo. Vivo é relativo...
- Mas me chamar que é bom nada... Bacana isso. Não quero que me queira, quero que me chame!
- O meu prazer começa na tua vontade de vir. Se você vem porque eu chamei, é igual tomar café velho... É gostoso, é café! Só não é tão gostoso quanto poderia ser se você tomasse na hora certa...
- É nessas suas vontades arrogantes de tudo ou nada que vai acabar me perdendo. Não vai me perder pra outro, só vamos nos afastar e um dia eu não vou conseguir vir até você.
- Quando e se acontecer, vai significar que parte de mim não existe mais. E se essa parte que nos liga não existir mais, vai ser melhor você não chegar até mim.
- Você fala como se fossemos esses mortais com quem lidamos separadamente. Não entende mais?! Não existe distância física. Eu estou aqui o tempo todo, atrás de cada porta, de baixo das folhas, entre sua cabeça e o travesseiro. Eu sei disso pq conforme o tempo passa você também está aqui, eu pareço um fantasma te vendo se, você me ver, te ouvindo sem você saber que eu estou aqui. Quando você não age porque tem medo da dor, ela dói em mim! Eu passo por tudo o que você passa e não passaríamos por esses infernos todos se você só tivesse coragem pra assumir que não consegue sem mim. MAS QUE DROGA! EU TAMBEM NAO CONSIGO SEM VOCE!
O silencio pós berro durou segundos até que ela quebrasse em lágrimas. Ele ouvia na respiração dela. Sabia que ela se doía pela forma que ele agia. Ele não queria admitir, mas que sentia nos ossos era só o corpo refletindo o vazio que de não tela por perto. Ele começou a assoviar uma música que tocou na última vez que eles estiveram juntos de verdade. Ele interrompeu com toda delicadeza que lhe coube:
- Sabe como é que funciona né?! Só acontece se nos encostarmos. - Disse colocando a mão pra trás, sem se virar, como que esperando o toque dela. Ouviu o sorriso dela, se é que existe alguém capaz de ouvir um sorriso.
- Pode deixar as mãos pra frente, vai precisar delas.
Tomou o lápis nas mãos e começou a rabiscar enquanto ela mexia nos cabelos dele. Com uma das mãos ele espalhava pó de grafite e com a outra escrevia. Um punhado de palavras soltas, frases de efeito... Parecia que a cada toque dela ele sentia um pouco mais de vontade. Ele se sentia bem em receber este afago todo, bem de uma forma que até os ossos trincados voltavam a parecer inteiros. Conforme ela mexia os dedos, e alternava os ritmos entre rápido, muito rápido e devagar, ele tbm o fazia com o papel.  Ele só foi se dar por si ao terminar o desenho de raízes quebrando o asfalto e uma mulher brotando delas. Escreveu uma frase do Shakespeare. Percebeu que era ela falando através dele, desenho frase e tudo mais, eram só uma metáfora pro que ela fazia com ele. Ele se pegou olhando fixamente pra frase que brotou em meio a obra.
- Eu sou teu. Eu não consigo nem sirvo pra nada sem você. Eu quero você aqui, agora e sempre. Me desculpa por ter tentado sem você. Eu achei que ia ser menos, pior, mas mais aceitável.
- Acha mesmo que não consegue nada de bom sem mim?
- Eu consigo muito de bom... Você também. Mas o espetacular... O que ninguém mais sabe fazer, só conseguimos juntos.
Virou de uma vez, pra não dar tempo dela provoca-lo, acertou seus lábios nos dela e depois Desastrado que era, derrubou uma vela e o copo sobre o desenho. Fogo instaneo. Atirou-se sobre ela e ela sobre a cama. Enquanto coxas envolviam a cintura, bocas se roçavam, obra de arte se ia para onde veio tudo queimando e virando pó. Enquanto ele beijava seu pescoço, ela disse:
- Apague-se  a luz! - E todo o quarto era iluminado apenas pelo acidente na mesa e pela escolha na cama.
Incêndio na mesa e na cama Nunca duas divindades tiveram uma relação tão carnal quanto esses dois sempre tiveram. Por fim, só sobrou a frase shakespeariana e nada mais do desenho
"Um toque da natureza torna o mundo todo afim."
Ele, todo arrogante, é meu talento. Ela, toda briguenta, é minha inspiração. E só existe criação, quando os dois decidem se atracar, desta forma ou de qualquer outra.

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