20 de junho de 2012

Terra de confusões

I won't be coming home tonight /
My generation will put it right.
("Land of confusion", by Genesis)




















— Prontas? — Randy perguntou, com um aceno afirmativo de cabeça das duas garotas.
Ele, Demi e Marie estavam em um dos terminais rodoviários de Londres, esperando o ônibus estacionar para embarcarem rumo a algum lugar que pouco faziam questão de saber onde era. Qualquer lugar onde tivesse um albergue e não houvesse família.

Primeiro as damas. A primeira a entrar no ônibus foi Demi, ou melhor, Demetria Neil. A ninfeta de dezesseis anos trajava um vestido sóbrio de cor verde-guerra-ou-verde-vômito-ou-verde-musgo-ou-ah-eu-não-sei curto o bastante para mostrar que ela era livre e, portanto, suas intimidades também eram. Os cabelos pretos repicados à altura do ombro esvoaçavam com leveza quando ela sibilou um “bom dia” ao motorista, que sorriu indiferente a ela e suas coxas à mostra. Estava arrumada e perfumada demais para quem provavelmente dormiria em um quarto de albergue com cheiro de geladeira aberta, visto o parco dinheiro que o trio carregava.
A outra dama era Marie Calvin-Manson.
Mas antes de continuar a falar dela, que fique claro que Randy só deixava as duas subirem primeiro para que pudesse ver as amigas de modo privilegiado e impuro. Elas, coitadas, ainda acreditavam que ele era um cavalheiro.
Marie Calvin-Manson, enfim. Dezoito anos muito bem distribuídos no corpinho de um metro e meio, cabelos menos esvoaçantes e mais emaranhados que os de Demi e roupa mais comportada. Ou desleixada, como preferir. Uma camiseta justa de banda de rock que evidenciava seu busto e uma calça jeans preta básica e indispensável passou pelo motorista só com uma olhadela carregada com lápis de olho e um sorriso levemente forçado. Ela, cheia de tiques, roía as unhas mal esmaltadas de preto (“Preto nada, Noite Ametista”, diria Demi, Ph.D. em Nomenclatura de Esmaltes) e gostaria de um suco de maracujá, de dormir e nunca mais acordar naquele mundo sujo.
Muita calma nessa hora: A alegria do trio ainda estava subindo as escadas do ônibus.
De óculos redondos espelhados, colete preto e calças rasgadas, Randall Copeland Junior, de dezessete, deu ao motorista um bom-dia mais animado do que o Ronald McDonald poderia dar. Com uma música qualquer na cabeça (um reggae, levando em consideração seu modo saltitante de andar), passou a mão em sua vasta cabeleira espetada que mais parecia fogo tingido com sangue seco.
Sentou em um banco ao lado do seu par de amigas, separado pelo corredor. Ao seu lado estava um homem descendente asiático de pouco mais de trinta anos aparentes e pouca tolerância ao odor de juventude que saía de Randy. Por um momento se entreolharam, mas o engravatado morreria sem saber disso por causa do reflexo dos óculos de Randy que só mostravam seu rosto apertado e amarelado em vez dos pequeninos olhos castanhos do jovem.

O céu estava nublado, como de costume. Demi e Marie não paravam de conversar em um tom de voz alto o bastante para incomodar metade do ônibus enquanto Randy desistiu de se lembrar de músicas e colocou fones de ouvido em seu celular e, logo após, em seus ouvidos já feridos por eles. Decidiu por “I ain’t no nice guy”, uma música que, no aparelho celular de um cara de dezessete anos, soa irônica. No entanto, era válida. A vida do trio estava resumida em desilusões e arrependimentos, e naquela fuga.
Pois aquilo era uma fuga.
Uma fuga da mãe solteira incompetente e do irmão psicótico de Demi.
Uma fuga da mãe agiota e da sombra do pai fugitivo de Marie.
Uma fuga da mãe submissa, do pai alcoólatra e das irmãs inconsequentes de Randy.

Sim, eles fugiam de vidas inteiras. De uma infância inteira construída na rua Levine, de quartos quentinhos e roupa lavada. Dali para frente, partindo para um lugar que já esqueceram onde era, teriam que cozinhar as próprias refeições, lavar as próprias roupas, comprar absorventes e lâminas de barbear com seu próprio dinheiro, sem uma viga de sustentação aos lados. Eles eram seu próprio alicerce daquele momento até... até... bem, quem sabia até quando?
O trio fugiu de uma terra de confusões para entrar em outra. Não que eles se importassem, mas os problemas não deixariam de existir. Só seriam substituídos por outros que, coitados, não sabiam ser piores. Em poucos dias saberiam como o mundo era, e “sujo” seria só um elogio para a imundície tóxica desse aterro sanitário em que seres humanos pisam, constroem casas e vendem seus produtos.

O céu continuava nublado. O sol tardaria a aparecer, a iluminar.
Era a Era de Trevas deles.

E eles não perdiam por esperar.

2 comentários:

clari disse...

olha o justice be done ;-; <3

Alaor Rocha disse...

Ela lembra *~* Isso mesmo, Clarinha (: